quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

O ABUSO SEXUAL INFANTIL: DO SEXUAL TRAUMÁTICO AO TRAUMA DA VIOLÊNCIA SEXUAL

Joana Souza

A palavra trauma pertence ao campo médico e se refere ao choque responsável por provocar uma lesão no corpo. Entretanto, esse termo foi apropriado pela psicanálise, passando a abranger também as lesões causadas ao psiquismo. Podemos ver que num primeiro momento, Freud relacionou o trauma com o estado de desamparo ou impotência vivenciado pelo ser humano no momento do nascimento. Concebe a chegada do bebê ao mundo como sendo traumática, tendo em vista a mudança brusca de ambiente vivenciada no momento do nascimento, quando o infans é invadido por estímulos de toda ordem (auditiva, tátil, visual, gustativa, invasão dos pulmões pelo ar), etc. Freud entende que o nascimento é o primeiro trauma vivenciado pelo ser humano, momento de vivência do desamparado que dará origem ao afeto da angústia. (FREUD, 1926).  O trauma original, é o momento de encontro com aquilo que é impossível de ser representado, encontro com algo que é inassimilável para o sujeito. O trauma é o encontro com o real. (LACAN, 1962-63).
            Entretanto, a teoria freudiana sobre o trauma não está referida apenas ao choque inicial que é característico da entrada do sujeito no universo humano. Em outro momento, o trauma foi referido em sua relação com a teoria da sedução, criada por Freud na tentativa de delimitar a origem dos processos patológicos presente na histeria. Inicialmente, Freud acreditava que o sintoma histérico estava diretamente relacionado à sedução sofrida na infância por parte de um adulto ou mesmo por uma criança mais velha.  Essa hipótese surgiu a partir dos relatos  de lembranças infantis onde a presença de um sedutor quase sempre aparecia. Nesse momento, Freud pensa que a neurose é desencadeada pelas experiências sexuais precoces fomentadas por um sedutor na infância. Tais experiências de sedução vividas de forma passiva pela criança assumiriam um caráter traumático que, por sua vez desencadeariam os mais diversos sintomas neuróticos. Vejamos o que Freud afirma no texto A hereditariedade e a etiologia das neuroses de 1896:
Percorrendo retrospectivamente o passado do paciente, passo a passo, e sempre guiado pelo encadeamento orgânico dos sintomas e das lembranças e representações despertadas, atingi finalmente o ponto de partida do processo patológico; e fui obrigado a verificar que, no fundo, a mesma coisa estava presente em todos os casos submetidos à análise - a ação de um agente que deve ser aceito como causa específica da histeria. Esse agente é, de fato, uma lembrança relacionada à vida sexual, mas que apresenta duas características de máxima importância. O evento do qual o sujeito reteve uma lembrança inconsciente é uma experiência precoce de relações sexuais com excitação real dos órgãos genitais, resultante de abuso sexual cometido por outra pessoa; e o período da vida em que ocorre esse evento fatal é a infância - até a idade de 8 ou 10 anos, antes que a criança tenha atingido a maturidade sexual. Uma experiência sexual passiva antes da puberdade: eis, portanto, a etiologia específica da histeria.  (FREUD, 1896 [2006] p. 151).
            Freud estabelece uma correspondência entre o abuso sexual e as experiências sexuais infantis, indicando que essas experiências serviriam de pano de fundo para a histeria. Porém, tempos depois coloca em dúvida o fato de existirem tantos pais perversos. Em uma carta enviada a Fliess em 14 de agosto de 1897 (carta 70) afirma já não acreditar mais em sua “neurótica”. Introduz nesse momento a ideia de que uma fantasia investida de afeto equivaleria no inconsciente, à verdade que se tornaria uma realidade para o sujeito.
A partir desse momento, as experiências reais passam para um segundo plano e o que vigora é a noção de que a realidade é uma construção psíquica feita pelo sujeito que estaria diretamente vinculada ao desejo inconsciente. Assim, a teoria da sedução é substituída pela teoria da fantasia de sedução. Nesse momento, como afirma Coutinho Jorge, acontece uma “passagem fundamental” na obra freudiana destacada por Lacan que é a concepção do “trauma como contingência”, ou seja, “não se trata de que tenha havido trauma sexual na infância do sujeito, mas sim de que a estrutura da sexualidade é, ela própria, sejam quais forem os acontecimentos históricos, essencialmente traumática”. (COUTINHO JORGE, 2008 p. 21).
O psicanalista húngaro Sándor Ferenczi, contemporâneo de Freud, dedicou grande parte de sua vida à investigação do trauma. Ele tece uma crítica a Freud, quando chama a atenção para o fato de que a passagem da teoria do trauma de sedução para a teoria da fantasia comporta o perigo de não se ter em consideração os dados provenientes da realidade objetiva, que é a realidade inegável dos fatos ocorridos para além do campo da fantasia, e a desconsideração das impressões psíquicas oriundas das experiências de abuso vividas na infância. (FERENCZI,1933 p. 111). É possível perceber, que a teoria do trauma em Ferenczi é bem distinta do quê a que fora proposta por Freud. (GONDAR, 2017).   
            Assim, identificamos duas tendências no que se refere à investigação do trauma. Uma que privilegia os eventos traumáticos e sua “realidade”, e outra que dá preferência à atividade fantasística tendo como referência a realidade psíquica enquanto operadora do evento traumático em questão.
Um século após Freud formular suas teorias a respeito da sexualidade infantil,  a questão do incesto ou do abuso sexual infantil praticado no seio das famílias tornou-se um fato inegável que a sociedade rechaça e abomina intensamente. No Brasil, o estatuto da criança e do adolescente (ECA), foi criado como resposta à violência praticada por adultos contra sujeitos que se encontram em situação de vulnerabilidade física e psicológica. Por mais que saibamos que a sexualidade infantil, tal como Freud a concebeu é um fato inegável, não podemos deixar de nos manifestar quanto caráter perverso presente no adulto sedutor que transforma o corpo infantil em um objeto-fetiche.
            O psicanalista na clínica deve estar sensível ao fato de que nem todos os relatos de abuso devem ser tomados como sendo da ordem de uma fantasia sexual infantil. É verdade que na relação familiar de dependência em que se encontram as crianças - com seus pais, mães, irmãos mais velhos, avós, tios e primos – nem sempre é possível para elas ter  discernimento a respeito do que acontece quando são tocados, manuseados ou beijados por algum desses familiares (PIZÁ, 2010 p.20-21).
            Quase sempre o abuso é mantido em segredo dentro do seio familiar e muitas mães se calam diante do fato, deixando de exercer o dever de proteger a criança do adulto abusador. Do lado da criança, a impossibilidade de falar sobre os fatos tornam o incesto uma espécie de “violência silenciosa” como aponta Graça Pizá no livro Afetos Secretos, onde registra sua experiência no atendimento de crianças vítimas de abuso sexual. Como afirma:
O silencio imposto é a impossibilidade de a criança articular o impacto da experiencia sexual e a necessidade da sua denúncia; é o impedimento da palavra e os sentimentos dele decorrentes; é o silêncio capsular, fechado, criptado, cujos códigos de acesso impenetráveis, mobilizando intensa angústia; o aprisionamento, a dominação e a exibição de força mantêm o silêncio imposto sob o manto da lealdade, da confiança e da discrição. (PIZÁ, 2010 p. 51).

            A criança não consegue reconhecer a aproximação de um adulto sedutor como sendo perigosa ou como sendo uma ameaça. Mesmo portando uma intuição de que algo estranho está acontecendo, ela se recusa a ver o adulto sedutor como um perigo real e, desse modo, rende-se ao seu desejo. A sedução exercida pelo adulto captura o corpo da criança tornando-a prisioneira de seu próprio gozo, o que faz com ela se sinta culpada pelo abuso. Paradoxalmente, ela guarda dentro de si o medo de perder o amor daquele que diz que a ama fazendo com que ela mergulhe numa angústia avassaladora que a paralisa.  
            O silencio que se estabelece em torno da questão do abuso sexual de crianças por familiares, quase sempre é oriundo de um pacto familiar estabelecido para manter em segredo o fato, o que acaba por fazer com que a criança abusada seja sacrificada em prol da manutenção do status familiar. O silencio, bem como o não reconhecimento por parte do adulto da situação abusiva, constitui o que Ferenczi chamou de desmentido.
O desmentido (Verleugnung) é um termo alemão utilizado por Freud para caracterizar a existência de uma divisão no psiquismo que se dá entre o saber e o não-querer-saber. Por esse viés, o desmentido revela a existência de duas correntes opostas, uma que sabe que existe uma lei que estabelece proibições e normas responsáveis por reger a sociedade, e outra que, mesmo sabendo que existem limites a serem obedecidos, os desmente, comportando-se como se não existissem. Freud utilizou esse termo para se referir às duas formas em que a perversão se apresenta: uma que é inerente ao exercício da sexualidade e que se manifesta em todos os sujeitos, e outra referida a uma forma peculiar de estruturação do psiquismo, onde há a predominância de atos perversos.
A estrutura perversa tal como foi cunhada por Freud, se caracteriza pela eleição de um fetiche como objeto de gozo, o que me faz pensar que nos casos de pedofilia a criança é tomada pelo perverso como um fetiche, como um objeto de gozo apenas.
            O uso que Ferenczi faz desse termo difere do que Freud propôs. Como afirma Gondar (2017), o desmentido para Ferenczi diz respeito à negação do fato ocorrido por parte do outro. Melhor dizendo, o desmentido ocorre quando a situação de abuso vem à tona no seio familiar e o adulto responsável pela criança não reconhece, ou seja, desmente o fato e age como se não houvesse ocorrido. O silêncio, a falta de explicações claras e a negativa do adulto em escutar a criança é que constitui o trauma responsável pela desestruturação do psiquismo, como afirma Gondar:

Para que um trauma seja desestruturante ou invalidante, é preciso que a experiência de violência física se acrescente uma outra experiência; ela ocorre quando a criança, sem conseguir dar sentido ao que aconteceu, procura um outro adulto na família ou em seu entorno que lhe proporcione alguma explicação sobre a violência que ela sofreu, alguma referência sobre o que está acontecendo. Esse segundo adulto não quer ou não suporta o que a criança lhe traz, não ouve o seu relato, não percebe o seu sofrimento. Ele lhe diz que nada aconteceu, ou então que ela está mentindo ou imaginando coisas. (GONDAR, 2017)
           
Essa perspectiva será tratada por Axel Honneth (2003), um dos criadores da teoria do reconhecimento. Honneth, influenciado por Hegel, mostra como a ausência de reconhecimento se constitui para os sujeitos que passaram por situações de desrespeito, o fator traumático propriamente dito. Nessa perspectiva, o trauma surge num a posteriori do evento e está relacionado com o destino que é dado ao fato ocorrido. Para esse autor, o desrespeito e a ausência de reconhecimento são fatores que podem causar graves lesões ao psiquismo do sujeito, tento em vista o fator elementar de rebaixamento e de violação de direitos que essas atitudes comportam. Para Honneth, o desrespeito pode acontecer tanto na ordem da integridade corporal, quanto na subtração dos direitos fundamentais responsáveis por conferir um lugar para o sujeito no tecido social.  Honneth afirma que:

(...) aquelas formas de maus-tratos práticos, em que são tiradas violentamente de um ser humano as possibilidades da livre disposição sobre o corpo, representam a espécie mais elementar de rebaixamento pessoal. A razão disso é que toda tentativa de se apoderar do corpo de uma pessoa, empreendida contra sua vontade e com qualquer intenção que seja, provoca um grau de humilhação que interfere destrutivamente na auto-relação prática de um ser humano, com mais profundidade do que de outras formas de desrespeito; (HONNETH, 2003 p. 215).
           
            No do caso do abuso sexual praticado contra uma criança, o desrespeito acontece tanto no que concerne à violação do corpo, como também em seu direito fundamental de ter sua infância preservada. Quando isso não acontece e a criança é exposta a situações abusivas, uma enorme carga de afeto é colocada em ação na forma do medo, do terror e da angústia, que são expressões do sofrimento psíquico que a acomete. Cabe ao adulto proteger a criança de tais violações, garantindo-lhe as condições necessárias para seu crescimento e amadurecimento sexual. Mas, devemos estar atentos ao fato de que na maioria dos casos o abuso é praticado por um membro da própria família que, ao invés de proteger a criança, acaba por violentá-la. Tal fato faz com que a criança, muitas vezes, não consiga estabelecer uma distinção clara entre amor e violência.   A criança não é capaz de dar sentido à violência que ele sofreu ficando imersa no desamparo que se apresenta na forma de angústia.
            A condição básica para o exercício da sexualidade é que haja acordo entre as partes envolvidas para que ambas desfrutem mutuamente do ato sexual. No caso de relacionamentos entre adultos e crianças o que há é uma desigualdade, já que o adulto exerce sua força e seu poder de coerção o que caracteriza o abuso sexual como tal.      
            Em sua prática clínica o psicanalista não deve pautar-se em valores morais, mas sim na ética do desejo inconsciente. Assim, é necessário que o psicanalista, diante da evidência de que na raiz de toda manifestação da sexualidade humana o que se presentifica é a sexualidade infantil enquanto uma disposição originária da pulsão sexual, não seja insensível ao fato de que a significação traumática que é dada na idade adulta às experiências sexuais vividas na infância são trazidas para a análise com uma enorme carga efetiva.

Cabe ao psicanalista escutar a dor, mesmo que o que esteja em questão sejam as determinações inconscientes, determinações estas que denunciam a responsabilidade do sujeito frente ao gozo e ao desejo. O relato das lembranças, por mais que estejam sob o véu da fantasia, são trazidos com intenso sofrimento, sentimento de revolta em relação à mãe e demais familiares que, mesmo sabendo dos fatos, nada fizeram para evitá-lo. Cabe então ao psicanalista viabilizar a  simbolização da experiência traumática e a criação de novos vínculos afetivos pautados no desejo. 

Referências

FERENCZI, S. (1933). Reflexões sobre o trauma. Obras completas, Psicanálise IV.São Paulo: Martins Fontes, 1992.
FREUD, Sigmund. A hereditariedade e a etiologia das neuroses.  Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Vol. III.  Rio de Janeiro: Imago, 2006.
FREUD, Sigmund. Estudos sobre histeria.  Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Vol. II.  Rio de Janeiro: Imago, 2006.
FREUD, Sigmund. Carta 70.  Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Vol. I.  Rio de Janeiro: Imago, 2006.
GONDAR, J; REIS, E. S. O desmentido e a zona cinzenta. In: Com Ferenczi, Clinica, subjetivação, política. Rio de Janeiro; 7 letras, 2017.
HONNETH, A. Luta por reconhecimento. A gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003.
LACAN, Jacques. O Seminário- livro 20 - Mais, ainda, 1972-1973. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.