sábado, 25 de abril de 2015

A função da angústia na formação do psicanalista

Introdução:

A primeira referencia ao termo “desejo do analista” é encontrada no escrito “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”, onde Lacan nos oferece uma belíssima exposição a respeito do que vem a ser o ofício do psicanalista.
Lacan inicia seu trabalho afirmando que “O analista certamente dirige o tratamento. O primeiro princípio desse tratamento (...) é o de que não deve de modo algum dirigir o paciente” (Lacan, 1958/1998 p. 592). Com essa frase Lacan coloca o ser do analista no centro da questão relacionada à formação, destacando qual posição este deve ocupar frente ao analisando.
Se para Lacan o analista dirige o tratamento e o não o paciente, seus valores morais, seus preconceitos, formação cultural, assim como suas crenças devem ser excluídas da operação analítica.
Com o objetivo de definir critérios éticos para a formação do analista, Lacan levanta questões em torno da posição do analista, seu desejo e sua relação com a angústia. No seminário sobre a angústia afirma que, um analista quando inicia sua prática por mais que tenha uma boa disposição para ser analista é atravessado pela angústia à medida que precisa ocupar um lugar de semblante de objeto – de objeto a – de modo a fazer emergir o desejo do analisante. É essa angústia que precisa ser suportada e regulada ao longo da formação clínica. (Lacan, 1962-63/2005 p. 13).
Por essa perspectiva, procura delinear qual a função da angústia no tratamento, ao mesmo em que destaca as relações entre os analistas e esse afeto, que segundo Lacan, não parece preocupá-los.

1- O desejo do analista e a angústia
A noção de desejo do analista ao ser delineado por Lacan trás uma importante contribuição para se pensar a respeito da formação do analista, mas entendemos que seus fundamentos já haviam sido introduzidos por Freud principalmente em seus escritos sobre a técnica.
O que Freud nos ensina com sua experiência é que o ser do analista não é de nenhuma maneira, exterior ao campo psicanalítico, por isso a história da psicanálise está entrelaçada com a história de seu criador. Evidencia-se então, que o analista ao se constituir como herdeiro desse lugar simbólico instituído por Freud, deve estabelecer uma transferência com a psicanálise, onde seu próprio ser é colocado em jogo dia a após dia.
O desejo do analista difere do desejo inconsciente. O desejo inconsciente é constituído nas origens do sujeito e, portanto é indestrutível, enquanto que o desejo do analista precisa ser renovado a cada dia na experiência psicanalítica. Por essa razão Lacan é enfático quando afirma que o analista paga por ser analista. Paga com sua palavra quando esta tem o efeito de uma interpretação, com sua pessoa na medida em que se coloca como suporte dos fenômenos suscitados pela transferência, e por fim, paga com seu juízo quando toma a decisão de ser um analista, compreendendo que é por aquilo que ele é e não pelo que diz que se processa a cura no tratamento. Em outras palavras, o analista paga com sua castração, ao se recusar utilizar a sugestão como forma de fazer avançar o tratamento. (Lacan, 1958/1998 p. 593).
No Seminário X - A angústia, Lacan destaca que a angústia surge quando há uma relação ao nível do desejo. Lacan introduziu a angústia como sendo a presença enigmática do desejo do Outro, um desejo que interroga o sujeito na raiz mesma de seu próprio desejo como a, ou seja, como causa desse desejo e não como objeto. (Lacan, 1962-63/2005 p. 169).
Ao falar sobre o desejo do analista, Lacan estabelece uma perspectiva ética fundamental ao psicanalista que é ser causa de desejo. O desejo do analista faz com que o analista se coloque na posição de semblante do objeto de desejo do sujeito – objeto a - para tentar introduzi-lo na ordem do desejo. Quando o analista ocupa seu lugar, quando este se coloca na posição de dejeto e faz semblante de objeto a, ele permite que o sujeito do inconsciente tome-o por seu objeto de desejo (objeto a).(Lacan, 1962-63/2005 p. 115).
A perspectiva ética da formação do analista aponta que o desejo do analista é uma função que se constitui a partir da análise do próprio analista, de sua experiência com o inconsciente em sua própria análise e fundamentalmente com o encontro do real. É a travessia da fantasia, e consequentemente o encontro com o real que permite que o analista passe pela experiência de destituição subjetiva. Portanto, o desejo do analista é um desejo sem objeto, por que não visa a nenhuma satisfação pessoal ou narcísica. É uma função que faz funcionar o trabalho analítico, pois, ao ocupar um lugar vazio, o analista permite que o desejo do analisante possa aparecer. Por essa ótica, o desejo do analista – como desejo daquele que se propõe a dirigir um tratamento psicanalítico - difere do desejo do neurótico, pois coloca em evidencia a falta-a-ser do analista, falta que está para além da demanda endereçada ao analista pelo analisante. (Lacan, 1958/1998 p. 635). O analista deve ter em mente que a ética da psicanálise não está forjada segundo os ideais de conduta moral ou de felicidade, devendo estar centrada no desejo inconsciente, o que implica no abandono de qualquer promessa de felicidade. É uma ética que permite ao sujeito reconhecer-se como desejante, e que possibilita a travessia da angústia. (LACAN, 1959-1960/2008 p. 355-356). Por essa perspectiva, a angústia que surge da parte do analisante tem a função de ser o motor da análise. É quando a angústia aparece do lado do analisante que um saber pode ser constituído a partir de um trabalho de elaboração da análise. Como adverte Lacan, esse é um momento crucial, onde o analista deve nodular a sua própria angústia e se privar de fazer uso de qualquer sugestão, ocupando, assim, um lugar de falta para o sujeito, suspendendo o desejo de curar.               
Lacan adverte que o analista não está livre de experimentar certos sentimentos em relação aos seus pacientes. Coloca que o analista pode ser “intimado a justificar todos os seus sentimentos” perante si e ao sujeito com quem está engajado numa “empreitada analítica”. O perigo, segundo Lacan, é que o analista faça da interpretação uma confissão a respeito de sua angústia. A angústia sinaliza para o analista a existência de outro desejo, que não é o desejo do analista. (Lacan, 1962-63/2005 p. 157-159).
Conclui-se, portanto que a angústia do lado do analista tem a função de denunciar a presença de um desejo inconsciente, que poderá impedir o percurso analítico do paciente. O analista ao querer o bem para o analisante transforma-o em seu objeto de desejo, passando a intervir sugestivamente de forma a preencher o vazio, a falta constituinte do sujeito. O desejo do analista, por sua vez, deve ser sustentado na experiência do criador da psicanálise, no sentido de permitir a construção de uma saber a partir da escuta analítica, possibilitando um avanço em direção às origens do sintoma que permita a travessia da fantasia.
A capacidade de escuta do analista está, pois ligada à sua própria trajetória na análise. Lacan coloca que a análise do analista é que vai capacitá-lo a suportar a transferência do analisante, as demandas a ele endereçadas sem se enrascar com sua própria (contra) transferência, que para Lacan é a expressão das resistências por parte do analista. É nesse momento que a angústia pode emergir do lado do analista impedindo que ele ocupe a função que lhe corresponde.

Referencias

COTTET, S. Freud e o desejo do psicanalista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1982.
FREUD, S Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
________ (1910) As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica. Vol. XI.
________ (1912-1913) Artigos sobre a técnica. Vol. XII.
________ (1912) Observações sobre o amor de transferência. Vol. XII.
________ (1912) Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. Vol. XII.      
JORGE, M. A. C.. Lacan e a estrutura da formação psicanalítica in Lacan e a formação do analista. Rio de Janeiro: Contra capa. 2006.
LACAN, J. Alocução sobre o ensino in Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar. 2003.
LACAN, J. Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956 in Escritos.
Rio de Janeiro: Zahar. 1998.
LACAN, J. A direção do tratamento e os princípios do seu poder in Escritos.Rio de Janeiro: Zahar. 1998.
LACAN, J. (1953-54) O Seminário livro 1 Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
LACAN, J. (1959-60) O Seminário livro 7 A Ética da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
LACAN, J. (1962-63) O Seminário livro 10 A angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
LACAN, J. (1959-60) O Seminário livro 11 Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

LEITE, S.. Considerações sobre experiência psicanalítica. Acheronta Revista de Psicoanálisis e Cultura. Vol. 9. Julho/1999. Disponível em www.acheronta.org