sábado, 1 de março de 2014

O SUJEITO DA PSICANÁLISE

            O advento do sujeito moderno acontece na medida em que este começa a desvincular-se dos mitos de criação e de toda ideologia teológica instituída durante a Idade Média. O sujeito moderno nesse contexto é o sujeito do conhecimento e, portanto da razão na medida em que seu surgimento remonta ao século XVII, momento em que as bases do racionalismo e da ciência moderna foram lançadas.
Sem dúvida, uma das mais importantes contribuições para o advento do sujeito moderno encontra-se na obra Meditações de Descartes, onde o autor defende sua tese fundamental “Penso, logo sou”. Descartes a partir do cogito coloca em questão o próprio pensar sobre o ser na medida em que este se torna pensável. Nesse sentido coloca que o pensamento com sua objetividade e racionalidade seria a única via possível para se alcançar a verdade. O sujeito cartesiano é capaz de produzir conhecimento, sendo que é nesse contexto que esse sujeito configura-se como necessário para o advento da ciência moderna. A ciência moderna, nesse contexto, surgiria como conseqüência do afastamento do homem da filosofia platônica, da teologia e da metafísica.
             Apoiando-se na obra de Descartes, Lacan, (1966), em A ciência e a verdade vai utilizar a noção de sujeito cartesiano como fio condutor em sua formulação acerca do sujeito da psicanálise. Nesse texto Lacan defende a tese de que há uma vocação científica na psicanálise, por isso procura situar a psicanálise em relação à ciência moderna afirmando que o sujeito da psicanálise é correlato do sujeito da ciência.
            De acordo com Lacan, a ciência moderna ao mesmo tempo em que favorece o aparecimento do sujeito, sem se dar conta, acaba por excluí-lo à medida que nega a existência dos fenômenos inconscientes apontados por Freud, tais como: o sonho, os lapsos, os chistes e o sintoma, fenômenos que constituem as formações do inconsciente.
Lacan, (1966), afirma que “o sujeito sobre o qual operamos na psicanálise só pode ser o sujeito da ciência” indicando que há um sujeito da ciência e que é sobre esse sujeito que a psicanálise opera. Podemos afirmar que a psicanálise trabalha com a aquilo que a ciência despreza, ou seja, o sujeito do inconsciente.
Para Lacan a visão de um sujeito dotado de razão é uma utopia e por isso procura, a partir de uma retomada da segunda tópica freudiana, situar o sujeito da psicanálise na divisão entre o saber e a verdade. Com isso Lacan não desconsidera a importancia da obra de Descartes para o avanço da ciência, propondo que o cogito ao instituir a dúvida como método, inaugura um momento em que o saber absoluto é colocado em questão.
Foi o cientificismo de Freud que permitiu que ele se voltasse para o sujeito do inconsciente, empreendendo uma extensa e minuciosa investigação dos fenômenos com os quais se deparava em sua clínica. Pode-se dizer que Freud promove uma ruptura com a ciência tradicional quando se propõe a escutar os sujeitos que o procuravam em sua clínica sem, na verdade, deixar de ser guiado pelo cientificismo. A psicanálise, portanto pode ser considerada uma ciência que opera de uma maneira muito particular, encontrando em si mesma as bases de seus princípios e seu método.
         De acordo com Lacan a Ichspaltung freudiana apresentada na segunda tópica, aponta para um corte, uma cisão fundamental que situa o sujeito entre o saber e verdade.
Nesse sentido, a segunda tópica freudiana propõe um contraponto a proposição “Penso, logo sou” na medida em que indica a existência de uma divisão constitutiva no sujeito. Essa divisão revela-se, de acordo com Lacan, no momento em que a dúvida se estabelece, ou seja, é no momento da dúvida que um saber não sabido pode surgir. Lembramos que Freud, (1917), ao afirmar que o eu não é o senhor da sua própria casa indica que o eu na verdade é uma instancia desprovida de saber, ponto que será valorizado por Lacan em Seminário sobre o eu quando aponta o eu como lugar do desconhecimento. Com essa afirmação Freud destitui o eu do lugar de unidade e saber instituído por Descartes. Por essa via é que Lacan propõe uma subversão ao cogito cartesiano ao afirmar que “penso onde não sou, logo, sou onde não penso”.
           Entendemos que há uma especificidade na psicanálise no que tange à questão do saber e da verdade. O saber para a psicanálise está do lado do sujeito do inconsciente, sendo que o acesso a ele vai depender de um trabalho analítico que segundo Elia, (2010), se realiza através de um determinado método - a psicanálise – e requer uma função operante - a do psicanalista. A experiência psicanalítica seria, portanto a via pela qual esse saber que na verdade é não sabido, ou seja, inconsciente pode ser acessado pelo sujeito. A experiência psicanalítica traz de volta o sujeito foracluído pela ciência à medida que o convoca a dizer tudo o que lhe vier a mente. É a fala do sujeito que lhe indicará o caminho de acesso ao saber inconsciente, pois é no campo da linguagem e, portanto simbólico que o sujeito do inconsciente se constitui.
            Em A ciência e a verdade Lacan, (1966), coloca em questão as relações do sujeito do inconsciente com a verdade, indicando que este tem a verdade como causa e não como conseqüência do acesso ao saber pelo uso da razão. A verdade como causa é o que resta do saber, sendo, portanto indecifrável.  A verdade não é mais do que aquilo do qual o saber nada pode apreender, ou seja, a verdade não pode ser delimitada ou mesmo circunscrita em um determinado campo do saber. Não é também uma verdade da psicanálise, uma Weltanschauung (visão de mundo) tal como referiu Freud, mas uma verdade referida ao sujeito na medida em que só ele pode semi-dizê-la, tal como Lacan propõe no Seminário XVII O avesso da psicanálise: “nenhuma evocação da verdade pode ser feita se não for para indicar que ela só é acessível por um semi-dizer, que ela não pode ser integralmente dita porque, para além de sua metade, não há nada a dizer”. (Lacan, 1992 p.53). Com essa afirmação Lacan aponta que há um ponto da verdade que a fala do sujeito não consegue alcançar, sendo, portanto indecifrável. Esse indecifrável Freud chamou de “umbigo do sonho”.
           Lacan indica que há um fora do discurso que não pode ser referido pelo sujeito, porque é recalcado, sendo que isto aponta para a impossibilidade da relação sexual, ou seja, a impossibilidade de se alcançar a satisfação plena do desejo. A verdade – ausência de plenitude – é aquilo que causa o sujeito na medida em que este não abre mão de obtê-la, constituindo-se dessa forma como sujeito desejante.
        Para concluir, esses pressupostos indicam que há uma antinomia entre o sujeito constituído pela ciência e o sujeito da psicanálise. O sujeito da psicanálise constitui-se a partir de sua inserção no mundo da fala e da linguagem, sendo que é este ponto que marca a ruptura entre a psicanálise e a lógica cartesiana. A psicanálise faz o sujeito emergir na experiência psicanalítica no momento em que o psicanalista coloca analisando na posição de sujeito suposto saber.

REFERENCIAS

ELIA, L. O conceito de sujeito. Coleção passo-a-passo. Rio de Janeiro: Zahar.2010.
FREUD, S. (1917). Luto e Melancolia. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
LACAN, J. (1966) A ciência e a verdade in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1998.
_________. O Seminário livro 17 O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1992.
MILNER, Jean-Claude. A obra clara: Lacan, a ciência e a filosofia. Rio de Janeiro: Zahar.