O advento do sujeito moderno
acontece na medida em que este começa a desvincular-se dos mitos de criação e
de toda ideologia teológica instituída durante a Idade Média. O sujeito moderno
nesse contexto é o sujeito do conhecimento e, portanto da razão na medida em
que seu surgimento remonta ao século XVII, momento em que as bases do racionalismo
e da ciência moderna foram lançadas.
Sem dúvida, uma das mais importantes contribuições
para o advento do sujeito moderno encontra-se na obra Meditações de Descartes, onde o autor defende sua tese
fundamental “Penso, logo sou”. Descartes a partir do cogito coloca em questão o próprio pensar sobre o ser na medida em
que este se torna pensável. Nesse sentido coloca que o pensamento com sua
objetividade e racionalidade seria a única via possível para se alcançar a
verdade. O sujeito cartesiano é capaz de produzir conhecimento, sendo que é
nesse contexto que esse sujeito configura-se como necessário para o advento da
ciência moderna. A ciência moderna, nesse contexto, surgiria como conseqüência
do afastamento do homem da filosofia platônica, da teologia e da metafísica.
Apoiando-se na obra de Descartes, Lacan, (1966),
em A ciência e a verdade vai utilizar
a noção de sujeito cartesiano como fio condutor em sua formulação acerca do
sujeito da psicanálise. Nesse texto Lacan defende a tese de que há uma vocação
científica na psicanálise, por isso procura situar a psicanálise em relação à
ciência moderna afirmando que o sujeito da psicanálise é correlato do sujeito da ciência.
De acordo com Lacan, a ciência
moderna ao mesmo tempo em que favorece o aparecimento do sujeito, sem se dar
conta, acaba por excluí-lo à medida que nega a existência dos fenômenos
inconscientes apontados por Freud, tais como: o sonho, os lapsos, os chistes e
o sintoma, fenômenos que constituem as formações do inconsciente.
Lacan, (1966), afirma que “o sujeito sobre o qual operamos na psicanálise só pode ser o sujeito
da ciência” indicando que há um sujeito da ciência e que é sobre esse
sujeito que a psicanálise opera. Podemos afirmar que a psicanálise trabalha com
a aquilo que a ciência despreza, ou seja, o sujeito do inconsciente.
Para Lacan a visão de um sujeito dotado de razão é
uma utopia e por isso procura, a partir de uma retomada da segunda tópica
freudiana, situar o sujeito da psicanálise na divisão entre o saber e a verdade. Com isso Lacan não desconsidera
a importancia da obra de Descartes para o avanço da ciência, propondo que o cogito ao instituir a dúvida como
método, inaugura um momento em que o saber absoluto é colocado em questão.
Foi o cientificismo de Freud que permitiu que ele se
voltasse para o sujeito do inconsciente, empreendendo uma extensa e minuciosa
investigação dos fenômenos com os quais se deparava em sua clínica. Pode-se
dizer que Freud promove uma ruptura com a ciência tradicional quando se propõe
a escutar os sujeitos que o procuravam em sua clínica sem, na verdade, deixar
de ser guiado pelo cientificismo. A psicanálise, portanto pode ser considerada
uma ciência que opera de uma maneira muito particular, encontrando em si mesma
as bases de seus princípios e seu método.
De acordo com Lacan a Ichspaltung freudiana apresentada na
segunda tópica, aponta para um corte, uma cisão fundamental que situa o sujeito
entre o saber e verdade.
Nesse
sentido, a segunda tópica freudiana propõe um contraponto a proposição “Penso,
logo sou” na medida em que indica a existência de uma divisão constitutiva no
sujeito. Essa divisão revela-se, de acordo com Lacan, no momento em que a
dúvida se estabelece, ou seja, é no momento da dúvida que um saber não sabido
pode surgir. Lembramos que Freud, (1917), ao
afirmar que o eu não é o senhor da sua
própria casa indica que o eu na
verdade é uma instancia desprovida de saber, ponto que será valorizado por
Lacan em Seminário sobre o eu quando aponta o eu como lugar do desconhecimento. Com essa afirmação Freud destitui
o eu do lugar de unidade e saber instituído
por Descartes. Por essa via é que Lacan propõe uma subversão ao cogito
cartesiano ao afirmar que “penso onde não
sou, logo, sou onde não penso”.
Entendemos que há uma especificidade
na psicanálise no que tange à questão do saber e da verdade. O saber para a
psicanálise está do lado do sujeito do inconsciente, sendo que o acesso a ele
vai depender de um trabalho analítico que segundo Elia, (2010), se realiza
através de um determinado método - a psicanálise – e requer uma função operante
- a do psicanalista. A experiência psicanalítica seria, portanto a via pela
qual esse saber que na verdade é não sabido, ou seja, inconsciente pode ser
acessado pelo sujeito. A experiência psicanalítica traz de volta o sujeito
foracluído pela ciência à medida que o convoca a dizer tudo o que lhe vier a
mente. É a fala do sujeito que lhe indicará o caminho de acesso ao saber inconsciente,
pois é no campo da linguagem e, portanto simbólico que o sujeito do
inconsciente se constitui.
Em A ciência e a verdade Lacan, (1966), coloca em questão as relações
do sujeito do inconsciente com a verdade, indicando que este tem a verdade como
causa e não como conseqüência do acesso ao saber pelo uso da razão. A verdade
como causa é o que resta do saber, sendo, portanto indecifrável. A verdade não é mais do que aquilo do qual o
saber nada pode apreender, ou seja, a verdade não pode ser delimitada ou mesmo
circunscrita em um determinado campo do saber. Não é também uma verdade da psicanálise, uma Weltanschauung (visão de mundo) tal como referiu Freud, mas uma
verdade referida ao sujeito na medida em que só ele pode semi-dizê-la, tal como
Lacan propõe no Seminário XVII O avesso
da psicanálise: “nenhuma evocação da
verdade pode ser feita se não for para indicar que ela só é acessível por um
semi-dizer, que ela não pode ser integralmente dita porque, para além de sua
metade, não há nada a dizer”. (Lacan, 1992 p.53). Com essa afirmação Lacan
aponta que há um ponto da verdade que a fala do sujeito não consegue alcançar,
sendo, portanto indecifrável. Esse indecifrável Freud chamou de “umbigo do
sonho”.
Lacan indica que há um fora do
discurso que não pode ser referido pelo sujeito, porque é recalcado, sendo que
isto aponta para a impossibilidade da relação sexual, ou seja, a
impossibilidade de se alcançar a satisfação plena do desejo. A verdade –
ausência de plenitude – é aquilo que causa o sujeito na medida em que este não
abre mão de obtê-la, constituindo-se dessa forma como sujeito desejante.
Para concluir, esses pressupostos
indicam que há uma antinomia entre o sujeito constituído pela ciência e o
sujeito da psicanálise. O sujeito da psicanálise constitui-se a partir de sua
inserção no mundo da fala e da linguagem, sendo que é este ponto que marca a
ruptura entre a psicanálise e a lógica cartesiana. A psicanálise faz o sujeito
emergir na experiência psicanalítica no momento em que o psicanalista coloca
analisando na posição de sujeito suposto
saber.
REFERENCIAS
ELIA,
L. O conceito de sujeito. Coleção
passo-a-passo. Rio de
Janeiro: Zahar.2010.
FREUD,
S. (1917). Luto e Melancolia. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund
Freud. Vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
LACAN, J.
(1966) A ciência e a verdade in
Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1998.
_________.
O Seminário livro 17 O avesso da
psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1992.
MILNER,
Jean-Claude. A obra clara: Lacan, a
ciência e a filosofia. Rio de Janeiro: Zahar.