sábado, 29 de novembro de 2014

A RELAÇÃO MÃE E FILHA E O PARADIGMA DA DEVASTAÇÃO

Joana Souza

            Freud, (1933), ao retomar o tema da sexualidade feminina na Conferência “Feminilidade”, aponta para a existência de uma zona obscura na relação entre mãe e filha, entretanto procura sanar essa dificuldade pensando o feminino a partir do Édipo e da castração. Três diferenças relativas à passagem do Édipo do menino e da menina serão destacadas por Freud no texto referido. Em primeiro lugar, destaca o fato de que a menina, diferente do menino, tem de mudar ao mesmo tempo de sexo e de objeto. Enquanto que o menino só possui uma zona genital predominante, ou seja, um órgão genital, uma mulher, por sua vez possui dois: a vagina e o clitóris, este tido como análogo ao membro viril masculino. Outra diferença apontada por Freud é que para os homens não há nenhuma mudança em relação ao sexo do objeto de amor, pois ele continuará sendo o mesmo do objeto inicial. Já para a mulher a mudança de zona erógena será seguida da mudança do sexo do objeto. E, por fim, a terceira diferença, refere-se à forma como, a partir do complexo de Édipo, o sujeito se posiciona frente ao complexo de castração. O complexo de castração torna-se o princípio organizador da diferença dos sexos.
            Ainda nesse texto, destaca que meninos e meninas tem a mesma relação libidinal com a mãe, que se torna para ambos o objeto privilegiado das pulsões genitais. Considera que enquanto que para o menino o complexo de castração põe fim ao complexo de Édipo, acarretando a renuncia dos objetos parentais, seu efeito na menina a conduz a se refugiar no amor do pai, que ela jamais abandonará completamente. Por outro lado, afirma que a evolução para a feminilidade pode ser abortada, na medida em que inconscientemente, a revolta da menina pela falta do pênis, ou seja, a descoberta da castração pode levá-la a dois desfechos diferentes: ela pode assumir uma atitude de rejeição, de renúncia a atividade fálica, ou ela pode renegar a castração, dando lugar para o complexo de masculinidade, posição que pode levá-la ao homossexualismo.
            Mesmo abordando o feminino pela via do falo, Freud, (1933), não deixa de reconhecer a relação primitiva da menina com a mãe como sendo fundamental. Freud considera que existe uma fase anterior ao Édipo que determina a relação entre mãe e filha, cuja  característica é a presença de sentimentos ambivalentes - uma combinação entre amor e ódio por parte da menina em relação a sua mãe que quase sempre culmina em ódio. As acusações e queixas da menina em relação a mãe tem o objetivo de mascarar os sentimentos hostis  que ela nutre pelo fato de culpar a mãe pela falta de um pênis, pois não consegue perdoá-la  por essa desvantagem.
            Ocorre que, a reivindicação fálica não se encontra excluída em nenhuma das três saídas possíveis encontradas pela menina diante da descoberta da castração, o que explica a obstinação da mulher para ter o falo. Freud demonstra que a lógica fálica está em sintonia com o funcionamento do aparelho psíquico, e que o feminino resta impossível de ser significado. A inveja do pênis é para Freud, aquilo que faz funcionar a evolução edipiana.
            Freud (1933 pg. 30) destaca que a castração com a qual a menina não quer lidar é a castração da mãe, pois seu amor era dirigido a uma mãe fálica e não a uma mãe castrada. Essa questão coloca para a menina um problema particular no que tange a sua relação com sua própria feminilidade porque a identidade feminina está inconscientemente assimilada à privação. A descoberta de que a mãe é castrada torna possível que a menina  abandone-a como objeto amoroso, entretanto, essa constatação torna-se o motivo para que a hostilidade predomine indefinidamente.
            A intensidade do ódio que a menina nutre pela mãe é equivalente a intensidade do amor. Esse amor, no entanto, está fadado a sucumbir, à medida que a menina se volta para o pai, com esperança de que ele lhe dê o pênis tão invejado. A essa mãe que seduz, que desperta o desejo para depois proibi-lo, só resta a hostilidade.
            O desenvolvimento de um forte complexo de masculinidade seria, para Freud, um segundo dos possíveis destinos do Édipo nas meninas, derivado da descoberta da castração. Nesse caso, há uma atitude de recusa em aceitar a castração que se conjuga a atitudes de rebeldia e exacerbação da masculinidade. O motivo para que o complexo de masculinidade se instale, de acordo com Freud, se encontra em dois fatos: primeiro a menina não abdicar da atividade clitoridiana, e segundo, a busca de refúgio na identificação com a mãe fálica ou com o pai. O homossexualismo feminino seria uma consequência direta do complexo de masculinidade (Freud, 1933 p. 33-34).
            Em síntese, Freud nos revela que a descoberta da realidade da castração opera catástrofes quase irreparáveis no psiquismo feminino. A dificuldade no que concerne à elaboração de uma identificação materna positiva capaz de sustentar uma identidade de sujeito desejante fazendo sucumbir a angústia de castração, faz da mulher um enigma para psicanálise.
            A questão do Édipo freudiano é retomada por Lacan em seu seminário sobre “As formações do inconsciente”. Nele, Lacan tenta desfazer os equívocos provocados pelos analistas pós-freudianos ao atribuírem uma importância excessiva à mãe, caracterizando a relação mãe-criança como sendo dual.
            O que é essencial nesse Seminário é o fato de Lacan situar a mãe enquanto Outro primordial, possuidor da palavra, para o sujeito. Trata-se de uma relação onde o desejo da mãe opera no sentido de situar o sujeito no campo do Outro. Para Lacan, a mãe é portadora da palavra, mas não da linguagem enquanto uma organização lógica capaz de regular as relações do individuo com o campo pulsional, através da castração simbólica. Nesse sentido, o Édipo lacaniano propõe que o pai simbólico é aquele que opera um corte na relação mãe-filho, abrindo a possibilidade de que algo, para além da captação imaginária, se constitua. A significação fálica, introduzida pelo significante Nome-do-pai, supostamente recobre o desejo da mãe, entretanto algo sempre escapa no que diz respeito ao gozo feminino.
            Ao propor as fórmulas quânticas da sexuação em 1972, no Seminário 20 – “Mais ainda”, Lacan reduz o mito edípico à lógica única da castração. Essas fórmulas, portanto, colocam em evidência a função de barreira contra o gozo do corpo que é instaurado pelo pai simbólico.
            Lacan, (1973), no texto “O aturdito”, utiliza o termo devastação para designar a relação de uma mulher com sua mãe. Seguindo a indicação do texto freudiano acerca da feminilidade, afirma que a mãe pode ser uma devastação para a filha. Nessa direção, procura abordar o feminino na fronteira entre o simbólico e o real, para indicar que a devastação que uma mãe pode ser para uma filha, pode ser um indício da relação privilegiada da mulher com o real. Para Lacan, a devastação que acomete a menina está relacionada ao enigma formulado pelo gozo feminino da mãe, ou seja, para a ausência de limite que ele comporta. Pode-se afirmar que esse gozo está fora do simbólico, pois não existe um significante que defina o que é uma mulher (Lacan, 1972, pg. 79-80). A devastação, enquanto fenômeno subjetivo que emerge no relacionamento mãe e filha, deixará suas marcas na relação da mulher com seu corpo, nas parcerias amorosas e em sua relação com as perdas.
          Em síntese, a devastação pode ser apreendida nas demandas de amor pleno que são endereçadas pela filha, demanda que busca a obturação da falta, pois tal como afirma Cristina Drummond “é pelo amor que uma mulher pretende remediar sua falta de substancia que ela imputa ao Outro”. A demanda pode levar a menina à devastação, na medida em que sua legitimação por parte da mãe se torna impossível.  É a relação especular que está em jogo, onde a menina busca no olhar do Outro materno, o assentimento para seu corpo. É o olhar do Outro que permite o recobrimento imaginário do corpo, um corpo que traz em si a marca de um real dessexualizado.


Referências

DRUMOND, Cristina. Devastação, outra face da angústia. Opção lacaniana. São Paulo. Nº 45. Mai/2006.
FREUD, S. (1920) A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher in Edição Standard das obras psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII.  Rio de Janeiro: Imago. 2006.
FREUD, S (1925) Algumas conseqüências da diferença anatômica entre os sexos. Edição Standard das obras psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XIX.  Rio de Janeiro: Imago. 2006.
FREUD, S. (1931) Sexualidade feminina. Edição Standard das obras psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XXI.  Rio de Janeiro: Imago. 2006.
FREUD, S. “A feminilidade, conferência 33”. Em: Caldas, H.; Murta, A.; Murta, C. (Org.) O feminino que acontece no corpo: a prática da psicanálise nos confins do simbólico. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2012, p.15-48.
LACAN, J. (1972) O Seminário livro 20: Mais ainda. Rio de Janeiro: Zahar. 2008.
LACAN, J. (1973) O Aturdito. In Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar. 2003.
MARCOS, Cristina. Mãe e filha – Da devastação e do amor in Tempo psicanalítico. Rio de Janeiro. Vol. 43. 2011.


sábado, 1 de março de 2014

O SUJEITO DA PSICANÁLISE

            O advento do sujeito moderno acontece na medida em que este começa a desvincular-se dos mitos de criação e de toda ideologia teológica instituída durante a Idade Média. O sujeito moderno nesse contexto é o sujeito do conhecimento e, portanto da razão na medida em que seu surgimento remonta ao século XVII, momento em que as bases do racionalismo e da ciência moderna foram lançadas.
Sem dúvida, uma das mais importantes contribuições para o advento do sujeito moderno encontra-se na obra Meditações de Descartes, onde o autor defende sua tese fundamental “Penso, logo sou”. Descartes a partir do cogito coloca em questão o próprio pensar sobre o ser na medida em que este se torna pensável. Nesse sentido coloca que o pensamento com sua objetividade e racionalidade seria a única via possível para se alcançar a verdade. O sujeito cartesiano é capaz de produzir conhecimento, sendo que é nesse contexto que esse sujeito configura-se como necessário para o advento da ciência moderna. A ciência moderna, nesse contexto, surgiria como conseqüência do afastamento do homem da filosofia platônica, da teologia e da metafísica.
             Apoiando-se na obra de Descartes, Lacan, (1966), em A ciência e a verdade vai utilizar a noção de sujeito cartesiano como fio condutor em sua formulação acerca do sujeito da psicanálise. Nesse texto Lacan defende a tese de que há uma vocação científica na psicanálise, por isso procura situar a psicanálise em relação à ciência moderna afirmando que o sujeito da psicanálise é correlato do sujeito da ciência.
            De acordo com Lacan, a ciência moderna ao mesmo tempo em que favorece o aparecimento do sujeito, sem se dar conta, acaba por excluí-lo à medida que nega a existência dos fenômenos inconscientes apontados por Freud, tais como: o sonho, os lapsos, os chistes e o sintoma, fenômenos que constituem as formações do inconsciente.
Lacan, (1966), afirma que “o sujeito sobre o qual operamos na psicanálise só pode ser o sujeito da ciência” indicando que há um sujeito da ciência e que é sobre esse sujeito que a psicanálise opera. Podemos afirmar que a psicanálise trabalha com a aquilo que a ciência despreza, ou seja, o sujeito do inconsciente.
Para Lacan a visão de um sujeito dotado de razão é uma utopia e por isso procura, a partir de uma retomada da segunda tópica freudiana, situar o sujeito da psicanálise na divisão entre o saber e a verdade. Com isso Lacan não desconsidera a importancia da obra de Descartes para o avanço da ciência, propondo que o cogito ao instituir a dúvida como método, inaugura um momento em que o saber absoluto é colocado em questão.
Foi o cientificismo de Freud que permitiu que ele se voltasse para o sujeito do inconsciente, empreendendo uma extensa e minuciosa investigação dos fenômenos com os quais se deparava em sua clínica. Pode-se dizer que Freud promove uma ruptura com a ciência tradicional quando se propõe a escutar os sujeitos que o procuravam em sua clínica sem, na verdade, deixar de ser guiado pelo cientificismo. A psicanálise, portanto pode ser considerada uma ciência que opera de uma maneira muito particular, encontrando em si mesma as bases de seus princípios e seu método.
         De acordo com Lacan a Ichspaltung freudiana apresentada na segunda tópica, aponta para um corte, uma cisão fundamental que situa o sujeito entre o saber e verdade.
Nesse sentido, a segunda tópica freudiana propõe um contraponto a proposição “Penso, logo sou” na medida em que indica a existência de uma divisão constitutiva no sujeito. Essa divisão revela-se, de acordo com Lacan, no momento em que a dúvida se estabelece, ou seja, é no momento da dúvida que um saber não sabido pode surgir. Lembramos que Freud, (1917), ao afirmar que o eu não é o senhor da sua própria casa indica que o eu na verdade é uma instancia desprovida de saber, ponto que será valorizado por Lacan em Seminário sobre o eu quando aponta o eu como lugar do desconhecimento. Com essa afirmação Freud destitui o eu do lugar de unidade e saber instituído por Descartes. Por essa via é que Lacan propõe uma subversão ao cogito cartesiano ao afirmar que “penso onde não sou, logo, sou onde não penso”.
           Entendemos que há uma especificidade na psicanálise no que tange à questão do saber e da verdade. O saber para a psicanálise está do lado do sujeito do inconsciente, sendo que o acesso a ele vai depender de um trabalho analítico que segundo Elia, (2010), se realiza através de um determinado método - a psicanálise – e requer uma função operante - a do psicanalista. A experiência psicanalítica seria, portanto a via pela qual esse saber que na verdade é não sabido, ou seja, inconsciente pode ser acessado pelo sujeito. A experiência psicanalítica traz de volta o sujeito foracluído pela ciência à medida que o convoca a dizer tudo o que lhe vier a mente. É a fala do sujeito que lhe indicará o caminho de acesso ao saber inconsciente, pois é no campo da linguagem e, portanto simbólico que o sujeito do inconsciente se constitui.
            Em A ciência e a verdade Lacan, (1966), coloca em questão as relações do sujeito do inconsciente com a verdade, indicando que este tem a verdade como causa e não como conseqüência do acesso ao saber pelo uso da razão. A verdade como causa é o que resta do saber, sendo, portanto indecifrável.  A verdade não é mais do que aquilo do qual o saber nada pode apreender, ou seja, a verdade não pode ser delimitada ou mesmo circunscrita em um determinado campo do saber. Não é também uma verdade da psicanálise, uma Weltanschauung (visão de mundo) tal como referiu Freud, mas uma verdade referida ao sujeito na medida em que só ele pode semi-dizê-la, tal como Lacan propõe no Seminário XVII O avesso da psicanálise: “nenhuma evocação da verdade pode ser feita se não for para indicar que ela só é acessível por um semi-dizer, que ela não pode ser integralmente dita porque, para além de sua metade, não há nada a dizer”. (Lacan, 1992 p.53). Com essa afirmação Lacan aponta que há um ponto da verdade que a fala do sujeito não consegue alcançar, sendo, portanto indecifrável. Esse indecifrável Freud chamou de “umbigo do sonho”.
           Lacan indica que há um fora do discurso que não pode ser referido pelo sujeito, porque é recalcado, sendo que isto aponta para a impossibilidade da relação sexual, ou seja, a impossibilidade de se alcançar a satisfação plena do desejo. A verdade – ausência de plenitude – é aquilo que causa o sujeito na medida em que este não abre mão de obtê-la, constituindo-se dessa forma como sujeito desejante.
        Para concluir, esses pressupostos indicam que há uma antinomia entre o sujeito constituído pela ciência e o sujeito da psicanálise. O sujeito da psicanálise constitui-se a partir de sua inserção no mundo da fala e da linguagem, sendo que é este ponto que marca a ruptura entre a psicanálise e a lógica cartesiana. A psicanálise faz o sujeito emergir na experiência psicanalítica no momento em que o psicanalista coloca analisando na posição de sujeito suposto saber.

REFERENCIAS

ELIA, L. O conceito de sujeito. Coleção passo-a-passo. Rio de Janeiro: Zahar.2010.
FREUD, S. (1917). Luto e Melancolia. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
LACAN, J. (1966) A ciência e a verdade in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1998.
_________. O Seminário livro 17 O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1992.
MILNER, Jean-Claude. A obra clara: Lacan, a ciência e a filosofia. Rio de Janeiro: Zahar.