Falar a respeito da constituição da realidade é o
mesmo que apontar as condições estruturais que possibilitam a existência do
sujeito humano. Esse tema é caro para a psicanálise, na medida em que
desconstrói tudo o que se possa referir a respeito da racionalidade do homem.
Talvez possamos pensar que a noção de “realidade psíquica” seja a verdadeira
inovação introduzida por Freud em sua delimitação do campo psicanalítico.
É
fato que Freud distingue a “realidade externa” da “realidade psíquica”. A primeira designa tudo que é apreendido pelo
sujeito a partir do mundo exterior e a segunda abrange de um lado as fantasias
de desejo instituídas pelo eu e de
outro, a apropriação que ele faz da realidade externa. Entretanto, a experiência clínica mostrou a
Freud que a apropriação da realidade externa pelo sujeito é, na maioria das
vezes, precária. Talvez seja por isso que o tema da realidade seja tão
recorrente na obra freudiana, a ponto se tornar o eixo em torno do qual algumas
noções fundamentais da psicanálise foram, gradativamente, sendo construídas.
Encontramos
no texto “A negativa” [1](Die Verneinung), publicado em 1925, uma
das mais densas elaborações a respeito da questão da constituição da realidade.
Apesar de ser um texto curto é de extrema importância, pois Freud levanta uma
discussão que concerne ao próprio campo filosófico, ao mesmo tempo em que traz
uma contribuição do campo psicanalítico, para a discussão a respeito da origem
do pensamento.
Freud
vai examinar a origem da função do juízo, apontando as condições necessárias a
partir das quais se torna possível a existência do sujeito humano no mundo. Em última
instancia, é em torno da questão da estruturação psíquica do sujeito que o
texto gira. Tomando alguns exemplos de
denegação[2]
que ocorrem na clínica, o autor aponta que a negativa é um modo de tomar
conhecimento do recalcado em um plano intelectual. Seria uma suspensão (Aufhebung) do recalque e não sua
aceitação, pois o essencial do recalque permanece intocado. Entende-se,
portanto, que será no plano da enunciação que a divisão radical que funda o
sujeito, se revela.
O
texto mostra que tanto o recalque quanto a negação são operações que pressupõe
que algo foi representado, isto é, afirmado na esfera psíquica. Primeiro é
necessário afirmar, inscrever algo, para depois negar. Como vimos
anteriormente, o recalque é a separação da idéia em relação ao afeto. Na
negativa, a suspensão do recalque opera apenas em relação ao que impede que o
conteúdo da idéia alcance a consciência, por isso, há uma admissão intelectual
do recalcado, mas o afeto não se articula. [3]
Freud
indica que os atos de confirmar (bejahen)
ou negar (verneinen) o conteúdo dos
pensamentos, corresponde à função psíquica de emitir juízos. Afirma que:
Negar (verneinen)
algo basicamente que dizer: “Isto eu prefiro recalcar”. A atitude de condenar
algo nada mais é do que um substituto intelectual do recalque e o “não” é sua
marca, um certificado de origem, com se fosse um “made in Germany”. Por meio do símbolo da negativa o pensar
liberta-se das restrições do recalque e se acrescenta de conteúdos dos quais
não podia prescindir na sua atividade.[4]
Em seguida, aponta que a função do
juízo está relacionada com duas espécies de decisões: atribuir ou não atribuir
uma propriedade a uma coisa , isto é, quando se confere um atributo de bom ou
mal para o objeto e admitir ou impugnar a existência de uma representação (Vorstellung) na realidade. De um lado
temos o juízo de atribuição regido pelo princípio do prazer e do outro o juízo
de existência regido pelo princípio de realidade. No juízo de atribuição vemos
que o eu-prazer originário, deseja
introjetar para dentro de si o que é bom ou prazeroso e colocar para fora tudo
o que é mal. Freud afirma que inicialmente não há diferença entre o que é mal e
o que se situa fora do eu. O bom é o
que está dentro e o mal é o que se situa fora. Em outros termos, a distinção
entre o que o é o eu e o que é
estranho ao eu, isto é, o mundo
externo, é o que dá uma consistência mínima ao princípio do prazer.
A
partir do juízo de atribuição é que se pode então colocar em ação o juízo de
existência que consiste em verificar se a representação psíquica de uma coisa existe
ou não no real. Freud assevera que o juízo de existência não se trata se algo
percebido será ou não admitida ao eu, mas
sim se existe uma representação no eu que
corresponda a aquilo que é reencontrado a partir da percepção, ou seja, na
realidade externa. Isso é o que Freud chamou de teste de realidade. O juízo de
existência, portanto, “é uma questão de interesse do eu-real-definitivo, que se
origina e se desenvolve a partir do eu-prazer inicial”.[5]
Um fato a ser destacado é que a existência da representação já é, desde o
início, a garantia da realidade do representado. Com isso, podemos observar que
o juízo de existência é regido pelas leis do princípio de realidade, sendo,
portanto seu correspondente.
É
importante lembrar que a oposição entre subjetivo e objetivo não existe desde o
início e que para que ela se estabeleça é necessário o reencontro com os traços
do objeto que outrora foi perdido. O pensar possui a capacidade de novamente
presentificar, através da imaginação algo que foi percebido. Assim, não se
trata de encontrar o mesmo objeto, mas algo que corresponda à representação do
objeto que foi perdido nas origens. Reencontrar o objeto significa o mesmo que
certificar-se de que ele existiu um dia e que foi representado pelo sujeito na
esfera psíquica. O reencontro do objeto é na verdade o reencontro com as marcas
de prazer representadas a partir da primeira experiência de satisfação que
possibilitam o surgimento do desejo. Entretanto, a satisfação obtida a partir
desse reencontro é sempre parcial, o que significa dizer que ele estará sempre
fadado ao fracasso.[6]
Outra
faculdade do pensar que contribui para o afastamento entre subjetivo e o objeto
é o fato de que a representação mental do objeto passa por deformações e que
por isso, nem sempre corresponde ao esperado. Cabe ao teste de realidade
identificar até que ponto chegam essas deformações. Nesse mesmo sentido, com
Freud, podemos pensar que aquilo que é recolhido do objeto corresponde apenas a
um traço, um fragmento que se torna o representante da coisa e não a coisa em
si. Cabe ressaltar que o objetivo do teste de realidade não é de encontrar na
percepção o objeto real, mas reencontrar um objeto que corresponda ao
imaginado, e que a pré-condição para sua realização seria que os objetos que
outrora trouxeram satisfação tenham sido perdidos. Ao operar o teste de
realidade o eu suspende a ação do
principio de prazer, submete-o ao princípio de realidade ao mesmo tempo em que
promove o adiamento da satisfação.[7]
A
função intelectual do julgar tem, por outro lado, grande importância no
controle da ação motora exercida pelo eu.
Freud indica que o pensamento serve como um tempo necessário para que o eu faça o reconhecimento do objeto e assim
decida se deve ou não por um fim ao adiamento da descarga. Assim, a função
intelectual conduz do pensamento à ação.
Por
fim, Freud conclui que a afirmação e a negação correspondem aos dois pólos
pulsionais que regem o psiquismo humano. A afirmação (Bejahung) como um elemento de afirmação está ligada a Eros, que
corresponde à pulsão de vida e a negativa (Verneinung)
corresponde a própria ação da pulsão de morte cuja tendência é de expulsar,
desligar-se, manter afastado tudo o que possa causar desprazer.
O
texto “A negativa” revela que a constituição da realidade para o sujeito dá-se
a partir de uma operação simultânea em que há a inscrição de um primeiro dentro
que corresponde a operação da afirmação (Bejahung)
e a expulsão (Ausstossung) de tudo
que é experimentado como desprazeroso. A negativa (Verneinung) seria a sucessora da expulsão estando, portanto ligada
a da pulsão de morte. O que é proposto no texto é uma hipótese a respeito da
constituição do psiquismo e, consequentemente, da realidade a partir de dois
juízos: atribuição e existência. O primeiro corresponde ao império do princípio
do prazer e o segundo corresponde ao princípio de realidade. Freud indica que,
para que algo que é da ordem da realidade se constituía para o sujeito é
necessário que haja uma expulsão primária, que nada mais é que a assimilação
pelo aparelho psíquico da impossibilidade de obter a satisfação total do
desejo. Para que o eu seja capaz de
exercer a função do juízo de existência, isto é, do teste de realidade é
necessário que o símbolo da negativa tenha sido criado nos primórdios da
constituição do psiquismo. A criação do símbolo da negativa é, portanto, aquilo
que possibilita um posicionamento do sujeito no mundo. Um fato que fica evidente no texto é que
tanto o juízo de atribuição quanto o juízo de existência são operações
agenciadas sob o domínio do princípio do prazer, e revelam sua tendência
unificadora.
A
negativa coloca em evidencia é a existência de uma a linha divisória entre as
estruturas neurótica e psicótica. A admissão de algo seguido de sua expulsão
seria o que caracteriza a estrutura neurótica. A neurose, portanto, se
estrutura a partir da fusão[8]
entre pulsão de vida e pulsão de morte. Por outro lado, quando não acontece a
expulsão (Austossung) originária, o
que se instala é o negativismo, que segundo Freud, é característico da psicose.
O negativismo é um sinal de que houve a retirada dos componentes libidinais, ou
seja, de que houve a desfusão e separação das pulsões.[9]
Enquanto que o negar ocorre no nível do pensamento, o negativismo corresponde a
uma atitude em que o próprio ser do sujeito é negado, ou seja, não há a
afirmação de algo pelo seu contrário. Enquanto que o negar evidencia a
possibilidade para que aquilo que é impossível de ser admitido pelo psiquismo
seja representado, a negatividade aponta justamente para a impossibilidade de
que a representação ocorra.
O exame destes mecanismos evidencia
que o que permite diferenciar a estrutura psicótica da estrutura neurótica é a
posição que o eu assume em relação à
representação primordial. É aqui que podemos identificar o corte fundamental
entre realidade psíquica e realidade exterior. A diferença essencial consiste
no fato de que aquilo que é representado pelo eu passa a constituir sua realidade mais íntima, composta pelo
registro das imagens, pelas identificações e fantasias instituídas no momento
da estruturação do narcisismo. A
partir desses dados, pode-se então pensar que as representações primordiais
constituintes do eu, funcionam como
um filtro por meio do qual ele apreende a realidade material. É como se o eu operasse um recorte na realidade
externa seguindo linhas determinadas por sua realidade interior. Entretanto, há
algo dessa realidade que é intolerável para o eu e que por isso ele deve mascarar, obturar. Freud chamou de
“rochedo da castração”, isso contra o qual o eu luta incessantemente desde seus primeiros momentos de
existência. A castração coloca em cena a realidade de que o objeto de
satisfação do desejo inexiste. Paradoxalmente, é o fato de sua inexistência que
faz com o desejo emerja
possibilitando outras formas de existência para o sujeito humano.
Referências
[1]
FREUD, Sigmund. (1925) A negativa in
Escritos sobre a psicologia do inconsciente. Obras Psicológicas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro:Imago. 2004. Tradução de Luiz Alberto Hans.
[2]
[2] “Agora
o sr. deve estar pensando que eu queria dizer algo ofensivo, mas realmente não é essa minha intenção.” “ (...) O
senhor me pergunta quem poderia ser essa pessoa no meu sonho. Não é minha mãe”. E nós corrigimos:
Portanto, é sua mãe”. Idem pg. 147 (grifo nosso).
[3]
Ibidem pg.148.
[4]
Ibidem pg.148.
[5]
Ibidem pg. 149.
[6]
Lacan retoma essa questão no Seminário 7 – A ética da psicanálise, para mostrar
que a análise se dirige para algo que é da ordem do real e não do ideal.
[7]
Tais afirmações vêm de encontro ao que fora anunciado por Freud no texto Projeto para uma psicologia científica,
sobre o qual tratamos no início desse trabalho.
[8]
Essa questão nos remete ao texto O
problema econômico do masoquismo publicado em 1924, em que Freud postula a
existência de um masoquismo originário responsável por fusionar as pulsões.
Aqui, podemos inferir que é a afirmação e a expulsão de algo no psiquismo
aquilo que torna possível a fusão das pulsões. Quando há a defusão das pulsões
o que prevalece é o domínio da pulsão de morte.
[9]
Ibidem pg. 150.