domingo, 18 de agosto de 2013

Sobre a origem e a função do pensamento em Freud

Falar a respeito da constituição da realidade é o mesmo que apontar as condições estruturais que possibilitam a existência do sujeito humano. Esse tema é caro para a psicanálise, na medida em que desconstrói tudo o que se possa referir a respeito da racionalidade do homem. Talvez possamos pensar que a noção de “realidade psíquica” seja a verdadeira inovação introduzida por Freud em sua delimitação do campo psicanalítico.
            É fato que Freud distingue a “realidade externa” da “realidade psíquica”.  A primeira designa tudo que é apreendido pelo sujeito a partir do mundo exterior e a segunda abrange de um lado as fantasias de desejo instituídas pelo eu e de outro, a apropriação que ele faz da realidade externa.  Entretanto, a experiência clínica mostrou a Freud que a apropriação da realidade externa pelo sujeito é, na maioria das vezes, precária. Talvez seja por isso que o tema da realidade seja tão recorrente na obra freudiana, a ponto se tornar o eixo em torno do qual algumas noções fundamentais da psicanálise foram, gradativamente, sendo construídas.
            Encontramos no texto “A negativa” [1](Die Verneinung), publicado em 1925, uma das mais densas elaborações a respeito da questão da constituição da realidade. Apesar de ser um texto curto é de extrema importância, pois Freud levanta uma discussão que concerne ao próprio campo filosófico, ao mesmo tempo em que traz uma contribuição do campo psicanalítico, para a discussão a respeito da origem do pensamento.
            Freud vai examinar a origem da função do juízo, apontando as condições necessárias a partir das quais se torna possível a existência do sujeito humano no mundo. Em última instancia, é em torno da questão da estruturação psíquica do sujeito que o texto gira.   Tomando alguns exemplos de denegação[2] que ocorrem na clínica, o autor aponta que a negativa é um modo de tomar conhecimento do recalcado em um plano intelectual. Seria uma suspensão (Aufhebung) do recalque e não sua aceitação, pois o essencial do recalque permanece intocado. Entende-se, portanto, que será no plano da enunciação que a divisão radical que funda o sujeito, se revela.
            O texto mostra que tanto o recalque quanto a negação são operações que pressupõe que algo foi representado, isto é, afirmado na esfera psíquica. Primeiro é necessário afirmar, inscrever algo, para depois negar. Como vimos anteriormente, o recalque é a separação da idéia em relação ao afeto. Na negativa, a suspensão do recalque opera apenas em relação ao que impede que o conteúdo da idéia alcance a consciência, por isso, há uma admissão intelectual do recalcado, mas o afeto não se articula. [3]
            Freud indica que os atos de confirmar (bejahen) ou negar (verneinen) o conteúdo dos pensamentos, corresponde à função psíquica de emitir juízos. Afirma que:

Negar (verneinen) algo basicamente que dizer: “Isto eu prefiro recalcar”. A atitude de condenar algo nada mais é do que um substituto intelectual do recalque e o “não” é sua marca, um certificado de origem, com se fosse um “made in Germany”. Por meio do símbolo da negativa o pensar liberta-se das restrições do recalque e se acrescenta de conteúdos dos quais não podia prescindir na sua atividade.[4]


            Em seguida, aponta que a função do juízo está relacionada com duas espécies de decisões: atribuir ou não atribuir uma propriedade a uma coisa , isto é, quando se confere um atributo de bom ou mal para o objeto e admitir ou impugnar a existência de uma representação (Vorstellung) na realidade. De um lado temos o juízo de atribuição regido pelo princípio do prazer e do outro o juízo de existência regido pelo princípio de realidade. No juízo de atribuição vemos que o eu-prazer originário, deseja introjetar para dentro de si o que é bom ou prazeroso e colocar para fora tudo o que é mal. Freud afirma que inicialmente não há diferença entre o que é mal e o que se situa fora do eu. O bom é o que está dentro e o mal é o que se situa fora. Em outros termos, a distinção entre o que o é o eu e o que é estranho ao eu, isto é, o mundo externo, é o que dá uma consistência mínima ao princípio do prazer.
            A partir do juízo de atribuição é que se pode então colocar em ação o juízo de existência que consiste em verificar se a representação psíquica de uma coisa existe ou não no real. Freud assevera que o juízo de existência não se trata se algo percebido será ou não admitida ao eu, mas sim se existe uma representação no eu que corresponda a aquilo que é reencontrado a partir da percepção, ou seja, na realidade externa. Isso é o que Freud chamou de teste de realidade. O juízo de existência, portanto, “é uma questão de interesse do eu-real-definitivo, que se origina e se desenvolve a partir do eu-prazer inicial”.[5] Um fato a ser destacado é que a existência da representação já é, desde o início, a garantia da realidade do representado. Com isso, podemos observar que o juízo de existência é regido pelas leis do princípio de realidade, sendo, portanto seu correspondente.
            É importante lembrar que a oposição entre subjetivo e objetivo não existe desde o início e que para que ela se estabeleça é necessário o reencontro com os traços do objeto que outrora foi perdido. O pensar possui a capacidade de novamente presentificar, através da imaginação algo que foi percebido. Assim, não se trata de encontrar o mesmo objeto, mas algo que corresponda à representação do objeto que foi perdido nas origens. Reencontrar o objeto significa o mesmo que certificar-se de que ele existiu um dia e que foi representado pelo sujeito na esfera psíquica. O reencontro do objeto é na verdade o reencontro com as marcas de prazer representadas a partir da primeira experiência de satisfação que possibilitam o surgimento do desejo. Entretanto, a satisfação obtida a partir desse reencontro é sempre parcial, o que significa dizer que ele estará sempre fadado ao fracasso.[6]
            Outra faculdade do pensar que contribui para o afastamento entre subjetivo e o objeto é o fato de que a representação mental do objeto passa por deformações e que por isso, nem sempre corresponde ao esperado. Cabe ao teste de realidade identificar até que ponto chegam essas deformações. Nesse mesmo sentido, com Freud, podemos pensar que aquilo que é recolhido do objeto corresponde apenas a um traço, um fragmento que se torna o representante da coisa e não a coisa em si. Cabe ressaltar que o objetivo do teste de realidade não é de encontrar na percepção o objeto real, mas reencontrar um objeto que corresponda ao imaginado, e que a pré-condição para sua realização seria que os objetos que outrora trouxeram satisfação tenham sido perdidos. Ao operar o teste de realidade o eu suspende a ação do principio de prazer, submete-o ao princípio de realidade ao mesmo tempo em que promove o adiamento da satisfação.[7]
            A função intelectual do julgar tem, por outro lado, grande importância no controle da ação motora exercida pelo eu. Freud indica que o pensamento serve como um tempo necessário para que o eu faça o reconhecimento do objeto e assim decida se deve ou não por um fim ao adiamento da descarga. Assim, a função intelectual conduz do pensamento à ação.
            Por fim, Freud conclui que a afirmação e a negação correspondem aos dois pólos pulsionais que regem o psiquismo humano. A afirmação (Bejahung) como um elemento de afirmação está ligada a Eros, que corresponde à pulsão de vida e a negativa (Verneinung) corresponde a própria ação da pulsão de morte cuja tendência é de expulsar, desligar-se, manter afastado tudo o que possa causar desprazer.
            O texto “A negativa” revela que a constituição da realidade para o sujeito dá-se a partir de uma operação simultânea em que há a inscrição de um primeiro dentro que corresponde a operação da afirmação (Bejahung) e a expulsão (Ausstossung) de tudo que é experimentado como desprazeroso. A negativa (Verneinung) seria a sucessora da expulsão estando, portanto ligada a da pulsão de morte. O que é proposto no texto é uma hipótese a respeito da constituição do psiquismo e, consequentemente, da realidade a partir de dois juízos: atribuição e existência. O primeiro corresponde ao império do princípio do prazer e o segundo corresponde ao princípio de realidade. Freud indica que, para que algo que é da ordem da realidade se constituía para o sujeito é necessário que haja uma expulsão primária, que nada mais é que a assimilação pelo aparelho psíquico da impossibilidade de obter a satisfação total do desejo. Para que o eu seja capaz de exercer a função do juízo de existência, isto é, do teste de realidade é necessário que o símbolo da negativa tenha sido criado nos primórdios da constituição do psiquismo. A criação do símbolo da negativa é, portanto, aquilo que possibilita um posicionamento do sujeito no mundo.   Um fato que fica evidente no texto é que tanto o juízo de atribuição quanto o juízo de existência são operações agenciadas sob o domínio do princípio do prazer, e revelam sua tendência unificadora.
            A negativa coloca em evidencia é a existência de uma a linha divisória entre as estruturas neurótica e psicótica. A admissão de algo seguido de sua expulsão seria o que caracteriza a estrutura neurótica. A neurose, portanto, se estrutura a partir da fusão[8] entre pulsão de vida e pulsão de morte. Por outro lado, quando não acontece a expulsão (Austossung) originária, o que se instala é o negativismo, que segundo Freud, é característico da psicose. O negativismo é um sinal de que houve a retirada dos componentes libidinais, ou seja, de que houve a desfusão e separação das pulsões.[9] Enquanto que o negar ocorre no nível do pensamento, o negativismo corresponde a uma atitude em que o próprio ser do sujeito é negado, ou seja, não há a afirmação de algo pelo seu contrário. Enquanto que o negar evidencia a possibilidade para que aquilo que é impossível de ser admitido pelo psiquismo seja representado, a negatividade aponta justamente para a impossibilidade de que a representação ocorra.
            O exame destes mecanismos evidencia que o que permite diferenciar a estrutura psicótica da estrutura neurótica é a posição que o eu assume em relação à representação primordial. É aqui que podemos identificar o corte fundamental entre realidade psíquica e realidade exterior. A diferença essencial consiste no fato de que aquilo que é representado pelo eu passa a constituir sua realidade mais íntima, composta pelo registro das imagens, pelas identificações e fantasias instituídas no momento da estruturação do narcisismo. A partir desses dados, pode-se então pensar que as representações primordiais constituintes do eu, funcionam como um filtro por meio do qual ele apreende a realidade material. É como se o eu operasse um recorte na realidade externa seguindo linhas determinadas por sua realidade interior. Entretanto, há algo dessa realidade que é intolerável para o eu e que por isso ele deve mascarar, obturar. Freud chamou de “rochedo da castração”, isso contra o qual o eu luta incessantemente desde seus primeiros momentos de existência. A castração coloca em cena a realidade de que o objeto de satisfação do desejo inexiste. Paradoxalmente, é o fato de sua inexistência que faz com o desejo emerja possibilitando outras formas de existência para o sujeito humano.

Referências

[1] FREUD, Sigmund. (1925) A negativa in Escritos sobre a psicologia do inconsciente. Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:Imago. 2004. Tradução de Luiz Alberto Hans. 
[2] [2] “Agora o sr. deve estar pensando que eu queria dizer algo ofensivo, mas realmente não é essa minha intenção.” “ (...) O senhor me pergunta quem poderia ser essa pessoa no meu sonho. Não é minha mãe”. E nós corrigimos: Portanto, é sua mãe”. Idem pg. 147 (grifo nosso).
[3] Ibidem pg.148.

[4] Ibidem pg.148.
[5] Ibidem pg. 149.
[6] Lacan retoma essa questão no Seminário 7 – A ética da psicanálise, para mostrar que a análise se dirige para algo que é da ordem do real e não do ideal.
[7] Tais afirmações vêm de encontro ao que fora anunciado por Freud no texto Projeto para uma psicologia científica, sobre o qual tratamos no início desse trabalho.
[8] Essa questão nos remete ao texto O problema econômico do masoquismo publicado em 1924, em que Freud postula a existência de um masoquismo originário responsável por fusionar as pulsões. Aqui, podemos inferir que é a afirmação e a expulsão de algo no psiquismo aquilo que torna possível a fusão das pulsões. Quando há a defusão das pulsões o que prevalece é o domínio da pulsão de morte.
[9] Ibidem pg. 150.