domingo, 23 de setembro de 2012

A QUESTÃO DO EU E DA REALIDADE PSÍQUICA NA PSICANÁLISE


No texto Projeto para uma psicologia científica, (1895), Freud aponta que aparelho psíquico é um aparelho de memória, ou seja, ele registra traços de experiências que lhe servirão de guia para suas ações futuras. (Freud, 1950 [1895] p. 351).
            Para Freud, o desamparo inicial que é experimentado pelos seres humanos provoca uma sensação de desprazer (aumento de excitação) que é sentido no corpo. A intervenção do outro com seus cuidados é que põe termo ao excesso de estímulos experimentado pelo bebê, proporcionando o alívio da tensão. Freud, (1950 [1895] p.370), coloca que a descarga da tensão provoca no bebê uma sensação de prazer que caracteriza a primeira experiência de satisfação. Considera que a intervenção do outro – primeiro objeto de satisfação – provoca uma alteração no mundo externo à medida que, com seu investimento ele recobre o estado de desamparo, possibilitando a sobrevivência desse pequeno ser no mundo. Essas primeiras experiências - desamparo (desprazer) e prazer (representações de desejo) – consistirão o primeiro traço mnêmico impresso no aparelho psíquico.  É esse traço, ou seja, a forma como o pequeno ser vivencia essa experiência que determinará os caminhos que ele trilhará em sua busca por satisfação. A imagem mnêmica da satisfação e o desprazer (excesso de estímulos) causado pelo desamparo farão com que o organismo trabalhe no sentido de restabelecer seu equilíbrio (homeostase). O bebê então, diante da impossibilidade de reviver a satisfação inicialmente experimentada, a reproduz em um jogo de alucinações. No Projeto Freud chama esse processo de modo primário de funcionamento do aparelho psíquico, onde o prazer é auto-erótico. (Freud, 1950 [1895]).
Ainda no Projeto Freud afirma que o eu surge como resultado da operação de ligação entre as representações de desejo derivadas da primeira experiência de prazer, que ele chama de idéias e o desprazer, também chamado de afeto. Aponta que o eu seria a instancia psíquica responsável pelo processo de inibição dos processos primários, tendo que regular as vias de escoamento da energia psíquica, direcionando-as para as percepções (representações de palavra) e não para as representações de desejo. (Freud, 1950 [1895] p. 375-377). Em última instancia, cabe ao eu a tarefa de fazer a distinção entre os traços mnêmicos (memória, representações de desejo) e as percepções, entre mundo interno e mundo externo, o que Freud chamou de teste de realidade. O teste de realidade tem a função de estabelecer a distinção entre o que é uma alucinação de desejo e o que é uma percepção, sendo que é essa função do eu que garantiria a existência do sujeito no mundo. (Freud, 1950 [1895] p.377).
Ao inibir o fluxo de energia, desviando-a para as percepções (representações de palavra), o eu impede a satisfação alucinatória do desejo e institui o princípio de realidade, também chamado de processo secundário de funcionamento do aparelho psíquico. O eu, portanto, tem que inibir o investimento no objeto promovendo um adiamento da descarga até que as indicações de realidade proveniente das percepções sejam representadas pelo aparelho psíquico. Para que essa operação seja efetuada é necessário que o eu seja capaz de lidar com o excesso de estímulos, o que Lacan chama de real.
Por sua parte, Lacan considera que é a entrada no universo da linguagem e, conseqüente no mundo simbólico, que permitirá que o eu seja capaz de subjugar as representações de imagens às categorias de linguagem, instituindo o princípio de realidade.
            No Seminário sobre A ética da psicanálise, Lacan, (1959-60) afirma que o princípio de realidade – operação agenciada pelo eu - faz muito mais do que simplesmente promover o controle das excitações. Ele promove também uma retificação, naquilo que seria a tendência original do aparelho psíquico, ou seja, a descarga via alucinação, opondo-se a ela. Por outro lado, cabe ao princípio de realidade a tarefa de guiar o sujeito para que ele chegue a uma ação possível, através do teste de realidade. (Lacan, 1959 p.40-42).
Lacan indica que os processos de pensamento são governados pelo princípio de realidade, mas os caminhos que ele trilha são determinados pelo inconsciente, ou seja, pelo princípio do prazer, e que estes só se tornam conhecidos pelo sujeito à medida que ele os expressa em palavras, tal como indica:

O princípio de realidade governa o que ocorre no nível do pensamento, mas é apenas na medida em que do pensamento retorna alguma coisa que, na experiência humana, ocorre ser articulada em palavras, que ele pode, como princípio do pensamento, vir à consciência do sujeito, no consciente. (Lacan, 1959-60 p. 45).

            Lacan, assim como Freud, salienta que é o princípio do prazer quem governa a subjetividade humana, pois a percepção pode estar vinculada tanto ao princípio do prazer e à atividade alucinatória quanto à atividade de pensamento, e isto, diz ele, é o que Freud chamou de realidade psíquica. A realidade psíquica, portanto, comporta de um lado os processos de ficção do desejo (registro imaginário) e de outro os processos de pensamento cuja função seria a busca e o reconhecimento do objeto, o que Freud chamou de reencontro com o objeto. (Lacan, 1959-60 p. 46).
            Considera que os processos de pensamento só se tornam conscientes à medida que o sujeito consegue articulá-los em palavras. A fala salienta Lacan, é o que permite que o sujeito articule seus pensamentos introduzindo neles certa ordem. À medida que o sujeito fala a estrutura significante interpõe-se entre a percepção e a consciência permitindo que o inconsciente (princípio do prazer) poça intervir revelando o encaminhamento do desejo do sujeito. Dessa forma Lacan nos revela a importância da linguagem na constituição do sujeito.  (Lacan, 1959-60 p. 63; 78).
Para Lacan, o sujeito é regido pelas leis do simbólico. A ordem simbólica pré-existe à sua constituição o que destaca a dependência do falante aos significantes que vem do Outro. Entretanto a posição do sujeito no mundo simbólico depende da simbolização da realidade objetiva, ou seja, da falta que está inscrita no Outro. A forma como o eu lida com a falta do objeto é que vai indicar os traços estruturais do sujeito (Lacan, 1954 p.255).
            Essa questão foi abordada por Freud, (1911), no artigo “Formulações sobre os dois princípios do acontecer psíquico” onde afirma que o eu, em alguns momentos, encontra dificuldade em conciliar as exigências feitas pela pulsão com a realidade intolerável, e que por isso tende a afastar-se dela. Desta forma, o eu na impossibilidade de satisfazer essas exigências realiza uma alteração na realidade, substituindo-a por outra que se adapte aos seus desejos. Destaca que na neurose o sujeito rejeita um fragmento da realidade indesejável, ao mesmo tempo em que promove o recalque das pulsões e substitui a realidade indesejável por outra mais agradável através da atividade do fantasiar. O neurótico busca realizar através da fantasia a satisfação do desejo.
Por outro lado, na psicose, o sujeito rejeita a realidade intolerável como um todo, ao mesmo tempo em que se afasta dela substituindo-a por uma nova realidade através do delírio. O delírio, segundo Freud, é um trabalho psíquico que permite o recobrimento daquilo que é impossível de ser simbolizado na realidade. (Freud, 1924).
            Lacan, por sua parte, considera que é com o real da castração, da falta do objeto, aquilo com que o sujeito tem que lidar. No Seminário 1 - Os escritos técnicos de Freud, (1953-54), destaca que os registros imaginário e simbólico têm a função de cobrir o real que marca a ausência total de sentido e que representa o traumático, ou seja, um excesso pulsional irredutível e impossível de simbolizar. Pode-se afirmar que a constituição do mundo simbólico é que vai garantir ao sujeito um acesso ao mundo real mediado pela imagem e pela palavra.
            Em síntese, pode-se afirmar que a realidade psíquica é fruto de um processo de simbolização da realidade objetiva, ou seja, dos objetos que são faltosos desde as origens do sujeito.


Referências

FREUD, S. Projeto para uma psicologia científica. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
__________ (1911) Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental. Vol. XII.
 _________ . (1924) A perda da realidade na neurose e na psicose. Vol. XIX.
LACAN, J. (1953-54) O Seminário livro 1 Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.
LACAN, J. (1959-60) O Seminário livro 7 A Ética da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

O DESEJO DO ANALISTA E A INSTITUIÇÃO DE SAÚDE MENTAL



            Freud no artigo “Linhas de progresso da terapia analítica” escrito em 1919, já previa a ampliação do uso da psicanálise em instituições de saúde pública, onde as camadas mais pobres da população teriam acesso ao tratamento psicanalítico.
            Tal como previsto por Freud, testemunhamos na atualidade o deslocamento do psicanalista dos consultórios privados para o espaço público, representado pelos hospitais gerais, ambulatórios e instituições de saúde mental. A inserção da psicanálise em tais espaços marca um momento de reaproximação entre o campo médico e o campo psicanalítico, ao mesmo tempo em que levanta importantes questões que nos fazem pensar sobre o lugar ocupado pelo analista nessas instituições e seu posicionamento em relação aos ideais pertinentes ao campo médico-psiquiátrico.
É preciso especificar que a psicanálise não é totalmente exterior ao campo médico, pois suas origens se deram no mesmo solo da medicina.  No entanto, apesar de ser derivada da medicina, a psicanálise não se constitui como um ramo especializado da mesma, tal como indica Elia ao afirmar que “... a psicanálise se constitui como um saber inteiramente derivado, porém não integrante do campo científico, porquanto resulta de uma operação de subversão desse campo pelo viés do sujeito...”
            O significante subversão utilizado por Elia aponta para o fato de que a psicanálise, mesmo sendo derivada do campo médico não se submete ao mesmo, ou seja, não está atrelada aos ideais que sustentam a prática médica.  O analista, diferentemente do médico, não se coloca no lugar de mestre detentor de um saber universal. O analista, orientado pela ética da psicanálise, opera a partir de um não saber ocupando o lugar de objeto a para o paciente, tal como indica Lacan no Seminário X A angústia.
            Entretanto, é preciso nos interrogar se a presença do analista em um terreno marcado pela hegemonia do saber médico-psiquátrico, não ocorreria no risco de um retorno às praticas clínicas pautadas em uma lógica humanitária, tal como preconiza a reforma psiquiátrica.
            A reforma psiquiátrica marca um importante avanço em relação ao tratamento da doença mental ao substituir o antigo sistema asilar, por um modelo que, idealmente, devolveu ao louco o status de cidadão. Um novo paradigma surge nesses novos espaços de tratamento da doença mental, onde o eixo norteador se liga ao ideal de humanização do atendimento e na garantia dos direitos sociais do doente, tais como, o trabalho, a moradia, o lazer, etc..
            A ética da psicanálise, por sua vez, não está forjada segundo os ideais de conduta moral ou de felicidade. A ética psicanalítica segundo Lacan deve estar centrada no desejo inconsciente, o que implica no abandono de qualquer promessa de felicidade.
Lacan afirma que a felicidade se tornou um fator de política, fortalecendo a idéia imaginária de que o saber possa se constituir como universal, como totalidade, promovendo a ilusão de uma felicidade plena. Em última instância, caberia aos governantes satisfazer as necessidades de todos os indivíduos, garantindo-lhes, desta forma, a felicidade. Lacan afirma que essa “moral é uma moral do mestre... vinculada a uma ordem dos poderes”, que não deve ser desprezada, contudo, não é disso de que se trata o campo de investigação da psicanálise. Se em Aristóteles há uma disciplina da felicidade, diz Lacan, nada há de parecido na análise.  O que está em questão para a ética da psicanálise é o desejo.
Por essa ótica, sustentar a ética da psicanálise na instituição de saúde mental seria para o analista um desafio constante. Tal como afirma Lacan, seria impossível para o analista não sentir uma certa angústia, ao ocupar na instituição uma posição de não saber, sustentando uma postura que permita ao sujeito que busca tratamento a possibilidade de construir um saber sobre seu mal estar. O que não significa que o analista trabalhará em um sentido contrário à política da instituição, mas sim que diante daquilo que é visto como universal no campo político, o analista trabalharia na direção de viabilizar a emergência da particularidade de cada um, não abrindo mão da ética psicanalítica.
Para inserir a psicanálise num campo como o da saúde mental - marcado por políticas que impedem o advento do sujeito - o analista, à semelhança de Freud, deve orientar-se a partir de seu desejo. O desejo do analista seria para Lacan, o dispositivo que capacita o analista a insistir, a não recuar diante dos impasses suscitados pelas políticas de saúde e pela hegemonia do discurso médico-psiquiátrico na saúde mental garantido a verdadeira inserção da psicanálise nesse campo.
Se o desejo de Freud possibilitou a construção do campo psicanalítico – tal como consideramos no início deste trabalho – somente a manutenção desse desejo torna possível a cada analista sustentar a práxis analítica. O desejo do analista então seria um corresponde do desejo freudiano que possibilita ao analista em formação reviver, a seu modo, a experiência singular transmitida por Freud de desconstrução de valores e ideais socialmente construídos. O que Freud nos ensina com sua experiência é que o ser do analista não é de nenhuma maneira, exterior ao campo psicanalítico, por isso a história da psicanálise está entrelaçada com a história de seu criador.
Evidencia-se então, que o analista ao se constituir como herdeiro do desejo freudiano, deve estabelecer uma transferência com a psicanálise, onde seu próprio ser é colocado em jogo dia a após dia.
A perspectiva ética da formação do analista aponta que o desejo do analista é uma função que se constitui a partir da análise do próprio analista, de sua experiência com o inconsciente em sua própria análise. Portanto, esse desejo é sem objeto, por que não visa a nenhuma satisfação pessoal ou narcísica. É uma função que faz funcionar o trabalho analítico, pois, ao ocupar um lugar vazio, o analista permite que o desejo do analisante possa aparecer.
A angústia quando surge do lado do analista é um sinal que indica a presença de um desejo inconsciente que poderá impedir o percurso analítico. Lacan adverte que esse é um momento crucial, onde o analista deve nodular sua própria angústia, ocupando assim, um lugar de falta para o sujeito, afastando-se de qualquer lógica humanitária e de qualquer idealismo.
Conclui-se, portanto, que o analista deve percorrer um caminho em sua própria analise pessoal para que seja capaz de sustentar a ética da psicanálise tanto no consultório privado, como em instituições de saúde mental, onde diariamente será convocado a dialogar com saberes de outros campos. A inserção da psicanálise em instituições pautadas no modelo médico depende do posicionamento do analista e de seu compromisso com sua formação permanente.


domingo, 22 de abril de 2012

FREUD: DO CAMPO MÉDICO AO CAMPO PSICANALÍTICO


Ao lermos as primeiras publicações psicanalíticas podemos verificar o empenho de Freud em fazer com que o campo médico reconhecesse a importância dos fenômenos subjetivos na etiologia das doenças nervosas. Nessa época, sob a influência de Charcot, Freud começa a tratar seus pacientes através do método catártico fazendo uso do hipnotismo e da sugestão como forma de fazer desaparecer os sintomas. O abandono do método catártico deu-se a partir da descoberta da existência de uma sobredeterminação psíquica na gênese das neuroses, ou seja, uma multiplicidade de fatores psíquicos que determinam seu surgimento.
            Freud relata que a transformação do método catártico (sugestivo) em psicanálise foi possível a partir da descoberta de novos fatores, tal como nos informa:

Entre os outros fatores que foram acrescentados ao processo catártico como resultado de meu trabalho e que o transformou em psicanálise, posso mencionar em particular a teoria do recalque e da resistência, o reconhecimento da sexualidade infantil e a interpretação e exploração de sonhos como fonte de conhecimento do inconsciente. (FREUD, 1914 p.25).

           Os conceitos acima mencionados foram construídos a partir das análises efetuadas por Freud em sua clínica e constituem os pressupostos que sustentam a metapsicologia freudiana. Destacamos que foram os equívocos e os insucessos experimentados nos primeiros anos de sua prática, que permitiram a Freud se interrogar sobre a natureza dos fenômenos que presenciava a cada encontro com seus pacientes.
            Conclui-se, portanto, que há uma especificidade própria no campo psicanalítico que é indissociável da experiência. A experiência freudiana e a predominância de seu desejo constituem-se como a pedra fundamental sobre a qual foi construída a metapsicologia freudiana.
           A construção do campo psicanalítico deu-se a partir do gradativo afastamento de Freud do modelo médico, seguido do luto pelos ideais que permeiam esse campo, e seu avanço no sentido de aprofundar suas pesquisas a respeito do aparelho psíquico humano. O desejo de saber de Freud foi o ponto de partida para a construção do campo psicanalítico e nesse sentido, Cottet assevera que considerar o desejo de Freud como sendo à base de sua construção teórica não invalida seu discurso, e que, a dependência de cada psicanalista em relação a esse desejo é que pode evitar a crescente degradação de seus conceitos.
Nota-se, portanto, que a especificidade do campo psicanalítico encontra-se ligada ao ser do próprio analista e à dimensão de sua experiência, enquanto herdeiro do desejo do criador da psicanálise.
            O que diferencia o campo psicanalítico do campo médico é a dimensão da experiência, pois é a partir do encontro singular entre o psicanalista e seu analisando que um saber pode vir a se constituir num a posteriori. Freud nos ensina que a experiência psicanalítica não se dá a partir de um saber já instituído e tomado como universal. O campo médico, por sua vez, por ser regido pelas leis da ciência, coloca-se como detentor de uma verdade universal.
            A ética própria ao campo psicanalítico, tal como Freud a concebeu, faz com que o analista escute o sujeito a partir de seu inconsciente permitindo que um saber se constitua do lado do sujeito, ao mesmo tempo em que este é levado a se responsabilizar pela posição que ocupa perante a vida.
          Entretanto, é necessário que o analista passe pelo mesmo processo vivenciado por Freud, tal como afirma Leite, “de desconstrução dos ideais previamente estabelecidos, e das formas que se coloquem como absolutas”, distanciando-se da “lógica presente no campo médico e, conseqüentemente, com uma dada moral presente no campo cultural de sua época”.

Referencias:
COTTET, Serge. Freud e o desejo do psicanalista. Rio de Janeiro: J. Zahar. 1989.
ELIA, Luciano. Psicanálise: clinica & pesquisa in: ALBERTI, Sonia e ELIA, Luciano (orgs) Clínica e pesquisa em psicanálise. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2000.
FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
_________.(1914) A história do Movimento Psicanalítico. Vol. XIV.
_________. (1919) Linhas de processo na terapia analítica. Vol.XVII
_________. (1912) Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. Vol.XII.
_________. (1933) Análise terminável e interminável. Vol.XXIII.
 LEITE, Sonia. Considerações sobre a experiência psicanalítica. Acheronta Revista Psicoanálisis e Cultura. Vol. 9. Julho/1999. Disponível em www.acheronta.org



sábado, 28 de janeiro de 2012

SOBRE A CRESCENTE MEDICALIZAÇÃO DA VIDA



Recentemente o jornal Folha de São Paulo publicou uma matéria sobre o boletim técnico elaborado pela ANVISA (Agencia Nacional de Vigilância Saniária), que aponta com detalhes que os medicamentos mais vendidos no Brasil fazem parte do grupo de remédios de venda controlada, tais como os ansiolíticos e antidepressivos. A crescente medicalização do povo brasileiro denuncia o fato de que as questões de ordem emocional são tratadas pelos médicos como se fossem de ordem biológica.


O imperativo capitalista “seja feliz a qualquer custo” impregnou a sociedade brasileira, causando um efeito devastador de conseqüências inimagináveis. Por certo, em uma sociedade onde se tem que produzir sempre e de forma rápida, não sobra tempo para elaborar as experiências da vida, tais como o luto, a dor e a angústia. Não há tempo para a tristeza. Ser triste, ou estar triste está fora de moda e incomoda as pessoas à volta.

Por outro lado, verifica-se que a vida se tornou pesada para muitos, por isso é preciso fugir da dura realidade. Muitas pessoas só dormem porque engolem uma pílula e só se levantam se engolirem outra. Ao invés de procurar tornar a vida algo possível, preferem não senti-la, não vivê-la.

Quando foi que o Rivotril se tornou um objeto indispensável na maioria das bolsas das mulheres? Um certo dia ouvi uma pessoa dizer: “Eu não saio de casa sem meu Rivotril!” Como chegamos a esse ponto?

Freud já previra no artigo “O mal estar na cultura” que a busca pela felicidade levaria o homem por tais caminhos. O homem transformou-se em uma máquina, que usa medicamentos para funcionar no tempo e ritmo certo.

O estranho é que as pessoas acham perfeitamente normal viver à custa de pílulas. O consumo de drogas lícitas superou o uso das drogas ilícitas. Vivemos um tempo onde acredita-se que é possível viver sem tristezas, sem frustrações. No entanto, tais experiências pertencem ao humano e fazem parte da existencia. Viver é perigoso, por isso é preciso ter coragem. Coragem para dizer não, para mudar a direção, para vivenciar e elaborar o que é humano. Coragem para entrar em contato com suas próprias verdades e para encará-las de frente, sem medo de sofrer, pois o sofrimento também faz parte da vida.

Dessa forma talvez possamos cantar como Gonzaguinha:

“É a vida! É bonita e é bonita!
Viver e não ter a vergonha de ser feliz,
cantar e cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz...”

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

O INCONSCIENTE ESTRUTURADO COMO LINGUAGEM

Freud, no artigo O Ego e o Id, traz algumas questões interessantes que vão de encontro às formulações lacanianas a respeito do inconsciente. Nesse artigo Freud faz uma colocaçao muito interessante que gostaríamos de destacar:


"A verdadeira diferença entre uma idéia inconsciente e uma idéia pré-consciente (um pensamento) consiste em que o material da primeira permanece oculto, ao passo que a segunda se mostra envolta com representações verbais....Estas representações verbais são restos mnêmicos." (FREUD, 1923 p.33-34).

Consideramos que as representações verbais, mencionadas por Freud na citação acima, nos reportam a questão da função da linguagem e sua relação com a estrutura do inconsciente, abordada por Lacan em vários de seus artigos e seminários. Lacan, (1985 p. 27), considera que o “inconsciente é estruturado como uma linguagem”. Com essa proposição Lacan coloca novamente em cena a importância da fala, tal como nos indica:

...foi preciso todo meu esforço para revalorizar aos olhos deles esse instrumento, a fala – para lhe devolver sua dignidade, e fazer com que ela não seja sempre, para eles, essas palavras desvalorizadas de antemão que os forçavam a fixar os olhos em outra parte, para lhes encontrar um fiador. (LACAN, 1985 p. 26).

Lacan considera que o inconsciente obedece às leis da linguagem, por isso coloca a fala como o instrumento por onde podemos verificar as manifestações do inconsciente, através dos atos falhos, chistes, relato dos sonhos e sintomas. Propõe que é a lingüística - cujo modelo é o jogo combinatório - que confere ao inconsciente um estatuto, podendo este ser qualificável, acessível e objetivável. (Lacan, 1985 p. 28).

Em seu célebre artigo “A instância da letra no inconsciente ou razão desde Freud” Lacan (1998, p. 498) afirma que “é toda a estrutura da linguagem que a experiência psicanalítica descobre no inconsciente”, estrutura esta que preexiste ao sujeito, que dela se apropria e toma de empréstimo o suporte material para dirigir-se ao outro, através do discurso.

Ainda nesse artigo Lacan menciona uma “distinção primordial”, proposta pelo lingüista Ferdinand de Saussure, entre o significante e o significado que nos permite o estudo das ligações próprias do significante. Lacan, (1999), em O Seminário – livro cinco – As formações do Inconsciente, preconiza a existência de uma cadeia de significantes que podem ser representados por uma série de anéis que se prendem uns aos outros e que portam duas dimensões, a primeira chamada de combinação, continuidade e concatenação da cadeia e outra que se liga a substituição cuja possibilidade está sempre presente em cada elemento da cadeia. A dimensão da substituição traz em si todas as possibilidades inerentes ao recurso criador, ou seja, à metáfora. É através da possibilidade de substituição que se pode ter acesso, como afirma Lacan, ao mundo do sentido:


...é por intermédio da metáfora, pelo jogo da substituição de um significante por outro num lugar determinado, que se cria a possibilidade não apenas de desenvolvimentos do significante, mas também de surgimento de sentidos novos, que vêm sempre contribuir para aprimorar, complicar, aprofundar, dar sentido de profundidade àquilo que, no real, não passa de pura opacidade. (LACAN, 1999 p. 35).

Lacan nos orienta que a produção de metáforas não está relacionada apenas às questões da língua, mas também, à evolução do sentido e principalmente em relação à forma como ele enriquece nossa vida. Podemos dizer que é na cadeia significante que o sentido insiste, pois neste deslizamento, sempre em ação no discurso, o significante incide no significado em duas vertentes: a metáfora e a metonímia.

REFERENCIAS
 
FREUD, Sigmund. O Ego e o Id. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago. 2006. Originalmente publicado em 1923.
LACAN, Jacques. A instância da Letra no inconsciente ou razão desde Freud in Escritos. Rio de Janeiro: Zahar. 1998.
LACAN, Jacques. O Seminário – livro cinco – As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar. 1999.
LACAN, Jacques. O Seminário – livro onze – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar. 1985.