sexta-feira, 28 de outubro de 2011

A PSICANÁLISE NA UNIVERSIDADE

O ensino da psicanálise nas Universidades não tem como objetivo a formação de psicanalistas tendo em vista a ausência, neste contexto, dos dispositivos que a operam. Entretanto, a presença da psicanálise no espaço universitário tem sua importância, pois permite que a doutrina psicanalítica seja veiculada através de seu ensino, despertando o interesse pela obra de Freud e facilitando sua inserção em diversos contextos.

Nas últimas décadas é notória a expansão do ensino da psicanálise nas universidades brasileiras nos cursos de graduação, especialização, mestrado e doutorado, sem falar nas pesquisas realizadas, nas publicações de artigos e livros. Essa realidade nos faz pensar a respeito da posição que o psicanalista enquanto “professor de teoria psicanalítica” deve ocupar e que efeitos seu ensino pode causar.

É notório que na universidade há a predominância da relação entre mestre e aprendiz. O discurso universitário coloca o saber como um bem, como uma “unidade de valor”, enquanto que o professor trabalhando a serviço de um poder assume para o aluno a posição de mestre detentor de uma verdade universal. Por outro lado, a ética do psicanalista mostra que existe um hiato entre poder e saber, pois o saber está do lado do sujeito e é inconsciente, não sendo, portanto instituído como um saber já sabido. (Lacan, 2003 [1970] p.305-307).

Conclui-se, portanto, que é a postura ética do psicanalista que está em jogo, ao ter diante de si o desafio de transmitir algo a partir de seu ensino. Cabe ao psicanalista na função de professor universitário sustentar a ética da psicanálise, possibilitando que outra relação com o saber, diferente daquela difundida pelo discurso universitário possa se constituir.

O psicanalista ao autorizar-se de si mesmo coloca em evidência a causa de seu desejo, seja de analisar ou de ensinar, trazendo como marca o estilo com o qual reinventa, a seu próprio modo, a psicanálise. É a enunciação do psicanalista que está em questão quando este ensina na universidade possibilitando que a transferência se estabeleça tanto com seus alunos, quanto com seus colegas.

Freud, (1914), em “Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar” deixa claro que a figura do professor ocupa uma posição diferenciada na economia psíquica do aluno, o que nos permite inferir que é na transferência entre o psicanalista na função de professor e seus alunos que o ensino da psicanálise na universidade pode produzir efeitos de transmissão e de formação.

Pensamos que a transmissão e a formação não se limitam a um espaço institucional e que não existem garantias de que numa Escola de Formação Psicanalítica essa transmissão sempre aconteça, pois há o perigo de que o discurso do Mestre se estabeleça mesmo na Escola, o que nos faz a acreditar que é o comprometimento do psicanalista com a ética da psicanálise e sua posição discursiva, seja o fator a ser considerado como essencial para que efeitos de transmissão e formação aconteçam.

Referências:
 
FREUD, S.. (1914) Algumas Reflexões Sobre a Psicologia do Escolar. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. XIII, 2006.
_________. (1919 [1918]) Sobre o Ensino da Psicanálise nas Universidades. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. XVII, 2006.


LACAN, J. A psicanálise e seu ensino in Escritos. Rio de Janeiro: Zahar. 1998.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

LACAN E OS ANALISTAS PÓS-FREUDIANOS

O percurso de Lacan foi marcado por um constante questionamento a respeito dos desvios éticos cometidos pelos analistas pós-freudianos, especialmente diante das questões suscitadas na clínica em relação à transferência e ao seu manejo. Desde os seus primeiros discursos, torna-se evidente o empenho de Lacan em sistematizar a teoria psicanalítica, diferenciando-a da psicologia do ego, tão difundida pela psicanálise inglesa e americana. Estas Escolas apropriaram-se de determinados textos freudianos, tais como, o Ego e o Id (Freud, 1923-1925) e desvirtuaram seu verdadeiro sentido, criando uma psicologia voltada para o fortalecimento do ego. Desta forma, distanciaram-se da proposta original de Freud ao colocarem em segundo plano a análise do inconsciente.

No texto “Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956”, Lacan (1998 ps.465-466) numa crítica à psicanálise inglesa e americana, denuncia que estes analistas “embrenharam-se cada vez mais na relação dual” com seus analisandos, onde a dimensão imaginária da relação analítica passa a favorecer a todo tipo de “devaneios psicológicos”, tais como: “o esgotamento das fantasias, a liberação da agressividade, a identificação com o eu forte do analista”, dentre outras. A finalidade da análise passou a ser a identificação do analisando com o eu do analista.

Ainda nesse artigo, Lacan retoma o texto freudiano “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise”, chamando a atenção dos psicanalistas para a regra analítica fundamental colocada ao paciente, de nada omitir durante o tratamento e sua contrapartida — a chamada — atenção flutuante. Lacan sublinha o que deve ser priorizado em uma análise: o discurso do sujeito e sua escuta, colocando em destaque o uso da linguagem. O quê o analista deve escutar? Os “(...) sons ou fonemas, das palavras, das locuções e frases, sem omitir as pausas, escansões, cortes, períodos e paralelismos, pois é aí que se prepara a literalidade da versão sem a qual a intuição analítica fica sem apoio e sem objeto”. (Lacan, 1998 p. 474).

O discurso deve ser a matéria com que trabalha o analista. O que Lacan enfatiza nesse artigo é a primazia da determinação simbólica, ao mesmo tempo em que circunscreve a direção do tratamento analítico centrado na escuta dos significantes que se presentificam no discurso do sujeito.

Em 1958 com o texto “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”, Lacan faz uma crítica à psicanálise inglesa e americana, ressaltando seu distanciamento da técnica analítica, tal como aquela proposta por Freud, ao fazerem uso da sugestão no tratamento analítico. Aponta ainda os desvios a que a psicanálise se submeteu ao empenhar-se numa “reeducação emocional”, aos “princípios de um adestramento do chamado Eu fraco, e por um Eu o qual a quem goste de considerar capaz nesse projeto, porque é forte”. (Lacan, 1958 p. 594). De modo contrário ao que Freud propõe em seus escritos técnicos, a experiência analítica transformou-se “num manejo da relação analista-analisado” onde a sugestão, a compreensão, as identificações e o ser do analista são oferecidos como forma de satisfazer a demanda de amor do analisando.Lacan afirma que, foi em torno da noção de Ego que giraram todos os desvios a que a psicanálise pós-freudiana se prestou. (Lacan, 1986 p.25).

Lacan levanta questões fundamentais para se pensar em que moldes deve acontecer a transmissão da psicanálise e a formação dos analistas. Como ocupar um lugar deixado vago por Freud, ou seja, o lugar de analista? Cottet, (1989 p.17) coloca que “essa experiência não encontra sua razão de ser em outro lugar senão no desejo do próprio Freud que a inventou”. É por esta via, a via do desejo de Freud que Lacan propõe que sigamos ao designar o termo desejo do analista, como um ponto de partida para repensar a formação dos analistas e a transmissão da causa freudiana. Lacan coloca o ser do analista em jogo quando afirma que “não é impossível, graças a Deus, que, por mais que apresente uma ótima disposição para ser analista, ele sinta, desde suas primeiras relações com o doente, uma certa angústia”.(Lacan, 1962-63 p.13).

Referências:
 
COTTET, Serge. Freud e o desejo do psicanalista. Rio de Janeiro: J. Zahar. 1989.
LACAN, Jacques. Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956 in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
LACAN, Jacques. Do “trieb” de Freud e do desejo do psicanalista in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1995.
LACAN, Jacques. A direção do tratamento e os princípios de seu poder in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.

sábado, 18 de junho de 2011

LACAN E A FORMAÇÃO DO PSICANALISTA

Lacan aborda a questão da formação dos analistas por um viés extremamente crítico. Em seu artigo “Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956”, aponta os caminhos de uma formação válida ao mesmo tempo em que critica a formação que era oferecida nas instituições psicanalíticas ligadas à IPA. Nesse artigo condena a ausência de rigor conceitual presente na literatura analítica e a curiosa posição de extraterritorialidade do ensino da psicanálise por ter se tornado metódico, estacionário e estéril. O ensino da psicanálise havia se tornado uma espécie de doutrina contrária a uma exploração científica aberta.

Movido por tais questões Lacan propõe um retorno a Freud capaz de propiciar um ensino digno desse nome, pois considera essa via como única formação que podemos transmitir aqueles que nos seguem. Ela se chama: um estilo. (Lacan, 1957 p.460).

Um ensino digno do nome de Freud é o que tem por efeito próprio evocar a falta. Logo, o estilo proposto por Lacan teria como marca o posicionamento do psicanalista em sua relação com o saber, pois o psicanalista ao ensinar deve fazê-lo a partir da posição de sujeito barrado ($) tornando possível a emergência da falta e não da posição de Mestre. O discurso do analista sustenta um ensino onde o saber não se constitui como verdade absoluta, ao mesmo tempo em que torna possível que o desejo de prosseguir com a formação analítica possam advir. (Lacan, 2003 p. 307-308).

O psicanalista Antonio Quinet assinala no artigo “O estilo, o analista e a escola” que o analista opera a partir de seu estilo através do qual ele sustenta o desejo do analista, sendo este o operador lógico de todo processo analítico. Por sua vez, Lacan considera que o desejo do analista é uma função que se constitui a partir da análise do próprio analista, de sua experiência com o inconsciente em sua própria análise.

No escrito “Alocução sobre o ensino” Lacan, (2003), afirma que o analista ao ensinar, o faz a partir de sua experiência com o inconsciente enquanto psicanalisante. A análise pessoal se constitui, portanto, como única via possível para a formação, cabendo ao analista autorizar-se de si mesmo quando se propõe a transmitir a psicanálise. Com esta proposição Lacan amplia a questão da formação para além do tripé freudiano, lançando sobre os analistas a responsabilidade em sustentar um desejo absolutamente singular: o desejo do analista. (Lacan, 2003 p. 248).

Consideramos que o analista, com seu estilo, deve sustentar o desejo de transmitir a psicanálise segundo os dispositivos que operam na formação do analista – análise pessoal, estudo teórico e supervisão – no âmbito da Instituição psicanalítica (psicanálise em intenção). Entretanto, Lacan na “Proposição de nove de outubro de 1967” salienta que a Escola ao formar analistas não faz mais do que preparar operadores para a psicanálise em extensão, deixando claro que existem operadores na formação do analista que sustentam a presença da psicanálise no mundo. Lacan salienta que existe uma continuidade entre a psicanálise em intenção e a psicanálise em extensão exemplificada na topologia moebiana do oito interior, onde não há dentro e fora, mas sim um movimento contínuo, tal como indica: “é no próprio horizonte da psicanálise em extensão que se ata o círculo interior que traçamos como hiância da psicanálise em intensão” (Lacan, 2003 [1967], p.261).

REFERÊNCIAS:
 
LACAN, J. A psicanálise e seu ensino in Escritos. Rio de Janeiro: Zahar. 1998.


LACAN, J. Alocução sobre o ensino in Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar. 2003.

________. Proposição de nove de outubro de 1967 sobre o psicanalista da escola in Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar. 2003.

________. O Seminário livro 17 – O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar. 1992.

LEITE, Sonia. Formação e transmissão - o que nos ensinam os escritores e os poetas? disponível em: www.psikeba.com.ar/articulos/SL_escritores_poetas.htm.

QUINET, Antonio. O estilo, o analista e a escola disponível em: www.lacan.orgfree.com/artigos.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

“O Eu é um outro” - considerações sobre a constituição do eu em Lacan

Vivemos um momento fértil no que se relaciona à produção científica voltada para análise do modo de vida contemporâneo, das relações e também das escolhas que o homem moderno tem feito. Sem dúvida estamos vivendo momentos de extrema insegurança e porque não dizer, inconstância nas relações. No entanto, entendemos que um estudo do modo de vida contemporâneo, deve sempre partir de uma maior compreensão a respeito do indivíduo, levando em conta aquilo que o determina.

Podemos afirmar que Jacques Lacan preocupava-se em elucidar duas questões específicas: a dimensão da determinação social sobre a experiência psíquica e as funções da imago na constituição do sujeito. Orientado por estas questões, Lacan concentrou-se em desvendar a teoria do narcisismo que fora desenvolvida por Freud, ampliando, desta forma, o conhecimento a respeito da constituição do eu. Lacan (1998) no artigo “O estádio do espelho como formador da função do eu” utiliza-se do estádio do espelho para nos explicar como a criança ao ver sua imagem no espelho reconhece-se como um outro imaginário passando a manter com essa imagem uma relação de identificação narcísica, também chamada de identificação inaugural. Essa primeira identificação deverá servir como modelo para outras identificações que o sujeito estabelecerá à medida que voltar sua libido para outros objetos. Esse é um importante momento, quando a criança deve se desprender dessa alienação narcísica.

Lacan ressalta a importância da fala fundadora que ao dizer: “tu és isto” introduz a criança no mundo simbólico, composto por significantes que tem por função imprimir no sujeito leis que o introduzirão no mundo da linguagem. O que Lacan nos ensina, é que somos determinados por coordenadas simbólicas que se expressam através da linguagem. No Seminário 3 – As psicoses, Lacan, (1985) nos fala a respeito da existência do significante - o Nome-do-Pai - como sendo o significante mestre que norteará toda a existência do sujeito. Adverte ainda que, é a ausência desse significante estrutural que constituirá o fenômeno psicótico, tal como indica:

“Na relação do sujeito com o símbolo (linguagem), há a possibilidade de uma Verwergung (rejeição) primitiva, ou seja, que alguma coisa não seja simbolizada que vai se manifestar no real.” (Lacan, 1985 p.100).

O eu constitui-se, portanto, através desses processos identificatórios e dos significantes que vem do outro, por isso Lacan afirma que o “o eu é um outro”, ou seja, o outro é a nossa medida. Lacan, (1985) apresenta no seminário 3 – As psicoses uma crítica a respeito do “discurso da liberdade, tão em voga na modernidade, ao afirmar que “vivemos numa sociedade em que a escravidão não é reconhecida”, uma sociedade que já percebeu a existência de uma discórdia entre o fato puro e simples da revolta e a eficácia transformadora da ação social. O discurso da liberdade, segundo Lacan, é não só ineficaz, mas também alienado em relação ao seu fim e ao seu objeto. Esse discurso articula-se no fundo com um certo direito do indivíduo à autonomia, estabelecendo sua independência não só em relação a todo senhor, mas também com todo deus.

Lacan considera que esse discurso assemelha-se ao discurso delirante do psicótico, que se recusa em reconhecer a existência de uma realidade que é exterior, em face das exigências que é preciso suportar da realidade. Afirma que, esse fato revela que “no estado atual das relações inter-humanas em nossa cultura ninguém está à vontade...”.

A psicanálise não coaduna com o discurso da liberdade. Antes se atém em um discurso diferente que se inscreve no próprio sofrimento do sujeito, visando o efeito do discurso no seu interior.

Concluímos, portanto que o discurso filosófico que defende uma existência autêntica, livre de todas as amarras que vem do mundo exterior, não é suficiente para que o eu seja capaz de sustentar um discurso que de alguma forma, não esteja marcado por suas identificações primitivas. O eu é um outro!



LACAN, Jacques. O Seminário – Livro 3 – As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1985.

LACAN, Jacques. O estádio do espelho como formador da função do eu in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1998.