sábado, 6 de março de 2010

PERVERSÃO: uma perspectiva psicanalítica


No século XIX a medicina ao especificar o campo da perversão concedeu a esta um estatuto de “doença” conceituado-a como um desvio da função sexual em detrimento do comportamento considerado normal. É nesse cenário que a psicanálise traz para a cena um questionamento: o que é normal dentro do campo da sexualidade? Para se estabelecer o conceito do que é um desvio é preciso uma fundamentação a respeito da normalidade. É disso que se ocupa o campo médico: estabelecer critérios que diferenciem o normal do patológico. Para isso foram criados manuais tais como o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) e o Código Internacional de Doenças (CID) que de tempos em tempos passa por atualizações. Todo esse trabalho realizado pelo campo médico tem como objetivo tamponar o mal estar que impera na civilização. Tomando como ponto de partida essa especificidade Freud entra em cena questionando a medicina e ao mesmo tempo afirmando que a sexualidade humana é perversa no artigo “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” publicado em 1905. A psicanálise traz um novo rumo para a compreensão da perversão ao defini-la como uma estrutura psíquica que está diretamente ligada ao complexo de Édipo.

Mais de cem anos se passaram e o século XXI chegou trazendo como marca a revolução tecnológica no campo das comunicações que nos colocam diariamente em contato com histórias de violência, abuso sexual de crianças e a existência de redes de pedofilia veiculadas na internet. Essas notícias nos causam indignação, perplexidade e deflagra o sentimento de desamparo trazendo à tona a insegurança que tem permeado nossa sociedade. O mal estar da sociedade é visível diante de tal realidade. O campo médico reage colocando à disposição da sociedade novos medicamentos, o governo acena com medidas punitivas mais severas, tais como a proposta de castrar quimicamente os sujeitos que cometem abuso sexual de crianças. A pedofilia é trazida para o palco das discussões e novamente o que prevalece é o discurso do campo médico que coloca à disposição da sociedade drogas que inibem o desejo sexual do sujeito.

Diante do discurso da medicina e dos governantes nos perguntamos: o que a psicanálise tem a dizer sobre essas questões?

A temática da perversão aparece na obra de Freud em 1905 no artigo “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” quando este ao investigar a sexualidade infantil faz uma distinção entre as inversões e as perversões. Nesse momento de sua obra Freud (1905/2006a) coloca o processo sexual perverso no desenvolvimento normal da sexualidade ao afirmar que a sexualidade infantil é perversa polimorfa.
"É instrutivo que a criança, sob a influencia da sedução, possa tornar-se perversa polimorfa e ser induzida a todas as transgressões possíveis. Isso mostra que traz em sua disposição a aptidão para elas (....)". FREUD, 1905, p. 180.

A permanência na vida adulta dessas características perverso-polimorfas, encontradas na sexualidade pré-genital infantil em detrimento da sexualidade genital considerada normal constituiria segundo o autor uma perversão. O argumento que ele utiliza aqui é de que a neurose é o negativo da perversão diferenciando assim essas duas estruturas. (Freud, 1905/1996, p.157). O estudioso afirma que no desenvolvimento normal da sexualidade os neuróticos “recalcam” os impulsos sexuais perversos, enquanto que nos perversos essa sexualidade não sofre recalque nem sublimação tornando o sujeito fixado à pré-genitalidade.

O pensamento inicial de Freud sobre as perversões era de que fantasias recalcadas na neurose são vividas sem culpa e conscientemente na perversão. (Freud, 1909/2006b).

Em “Uma criança é espancada: Uma contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais” Freud, (1919/2006c, p.208) afirma que as fantasias de espancamento eram apenas resquícios do conflito edípico, ou seja, marcas formadas nesse processo.

O tema da sexualidade infantil retorna na obra freudiana quando é publicado o artigo “A Organização Genital Infantil” em que Freud (1923/2006e) avança em direção ao mecanismo metapsicológico da perversão atribuindo ao complexo de castração um estatuto orientador no desenvolvimento da sexualidade trazendo de volta a dialética edipiana em torno da questão enigmática da diferença dos sexos. Nesse texto Freud afirma que:

"No decorrer destas pesquisas a criança chega a descoberta de que o pênis não é uma possessão, comum a todas as criaturas que a ela se assemelham(...) Sabemos como as crianças reagem às suas primeiras impressões da ausência de um pênis. Rejeitam o fato e acreditam que elas realmente, ainda assim vêem um pênis (...) A falta de um pênis é vista como resultado da castração e, agora a criança se defronta com a tarefa de chegar a um acordo com a castração em relação a si própria". Freud 1923, p. 159.

Esse confronto com a castração é angustiante para a criança e é essa angústia de castração que faz emergir reações defensivas destinadas a neutralizá-las. Construções psíquicas defensivas anunciam a negação da criança em aceitar a diferença real dos sexos assim como passam a predeterminar e orientar o curso da economia psíquica segundo certas modalidades que atualmente designamos em termos de estruturas psíquicas. (DOR, J. 1993 p. 36)

Ainda no artigo “A Organização Genital Infantil” Freud, (1923/2006f) volta-se para o mecanismo metapsicológico da perversão elaborando a noção de denegação da realidade, ligando definitivamente o desenvolvimento das perversões ao Complexo de Édipo.

Em “Fetichismo” Freud (1927/2006g) coloca o fetiche como substituto para o pênis da mulher (mãe), sendo a recusa dessa percepção traumática o mecanismo psíquico utilizado na perversão. A denegação da percepção do falta de pênis na mulher pelo Ego é um mecanismo de defesa diante da angústia de castração que viabiliza a coexistência de duas formações psíquicas inconciliáveis entre si: a recusa e ao mesmo tempo o reconhecimento da ausência do pênis na mulher. O sujeito diante da realidade da castração da mulher se vê diante de seus temores de castração, o que para ele seria insuportável caso não recorresse à fantasia de onipotência (formação substitutiva da realidade).

A idéia de que a perversão seria a manifestação da sexualidade infantil não recalcada é abandonada, assim como a concepção desta a partir do desvio quanto a um objeto sexual. O posicionamento do sujeito perante o complexo de Édipo passa a ser o fator determinante no posicionamento psíquico do sujeito, que diante da castração prefere recusá-la, neutralizando assim a angústia de castração.

A partir da elaboração do fetichismo, Freud irá desenvolver a noção de clivagem do eu, ou seja, a concepção de que há uma clivagem intrapsíquica que permite a coexistência de duas realidades inconciliáveis que jamais se influenciam. (DOR, J. 1993 p.38). Enquanto uma considera a realidade a outra nega a realidade substituindo-a pelo seu próprio desejo. Assim, o perverso conseguiria viver uma vida aparentemente normal segundo os parâmetros da sociedade e ao mesmo tempo manter comportamentos considerados inaceitáveis segundo a norma social. Freud apresenta o fetichismo como sendo uma espécie de modelo geral por seus elementos invariantes, sustentando-se, portanto, como uma estrutura psíquica.

Resumindo, a estrutura psíquica perversa encontra sua origem na obra freudiana a partir de dois processos, a saber, na angústia de castração e na mobilização de mecanismos defensivos destinados a contorná-la. (DOR, J. 1993).